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Foto do escritorLélia Almeida

Uma ET veio me visitar



Uma ET veio me visitar, bateu na porta da minha casa e quando abri ela me disse que tinham recomendado o meu nome porque sou uma velha feminista e escrevo sobre mulheres. Ela estava precisando arregimentar mulheres inteligentes de todo o universo para lutar contra a burrice masculina. E para isto precisava de muitas mulheres, mulheres inteligentes, estrategistas. Vinha cansada, mas feliz pela magnitude da tarefa. Eu disse que sentia muito, mas que não podia ajudá-la, porque, por aqui, as mulheres andavam muito desenergizadas e confusas. Ela me olhou surpresa e quis saber porque. Tinham-lhe dito que aqui encontraria mulheres sábias, combativas, inteligentes. Fiquei até com preguiça de falar, mas tratava-se de uma visita importante e tentei explicar.

As mulheres não estavam pensado coisas de fato importantes, comecei, poderiam ter grandes avanços contra a máquina funesta montada pelos machos, estes que matam as mulheres como moscas, diariamente, em todo o planeta, misóginos e covardes. Que as mulheres mal davam conta dos três turnos de trabalho, entre trabalhar fora de casa e cuidar da família e tals. E como se esta falta de tempo não bastasse, nas brechas de descanso, elas se dedicavam a pensar bobagens que as desfocavam do seu objetivo principal, que era construir sua autonomia e sua autoestima. A ET ficou com lágrimas nos olhos, umas lagriminhas verdes, de um suave verde alface. Ela quis saber no que pensavam, então, que pudesse deixá-las tão confusas. Eu contei que as mulheres dedicavam um tempo sem fim, intermitente, pensando na sua aparência e que viviam um total desconforto e mal-estar em relação aos seus próprios corpos. Que gastavam fortunas com acessórios, roupas, sapatos, bolsas, cremes, objetos decorativos e outras coisas inúteis para parecerem belas e jovens. Ela quis saber porque, eu disse que para poderem casar e ser aceitas pelos homens. A ET disse, NO ENTENDO. Casar para quê, ela insistiu, eu disse que para se sentirem legitimadas, porque sem eles, elas se sentiam como vacas sem o sino, como dizia o Almodóvar.

Cansada já, eu disse que não era fácil de entender, mas que assim era. E que se exauriam em pensamentos obsessivos onde cortavam partes gordas, exuberantes e generosas do próprio corpo. As lágrimas vertiam sem controle, eu nunca tinha visto uma ET triste e choramos juntas abraçadas. Ela perguntou se elas se cortavam tanto quanto desejavam e eu disse que sim, os olhos cresciam e ela insistia em não compreender, eu esclareci, elas acham que se não forem jovens, lindas e magras não serão amadas. A ET perguntou se os homens eram tão belos e jovens assim e eu expliquei que não, que eles também envelheciam, engordavam, choravam, se angustiavam, broxavam, mas que jamais pensavam em cortar as suas panças gordas de cerveja e que tinham uma autoestima mais do que elevada. E que por conta de todos estes pensamentos confusos elas não tinham tempo e nem energia para criar projetos importantes que poderiam salvar o planeta onde habitam com seus próprios filhos.

Ela estava pesarosa, decepcionada, pensava no desperdício de carnes e nutrientes abandonados nas mesas de cirurgia e que poderiam minorar a fome dos mundos, e que isto era obsceno e injusto. Tive de concordar, pra lá de envergonhada. Mas são todas as mulheres assim, ela quis saber, eu disse que não, que tinha as raquíticas, miseráveis, com os peitos subnutridos carregando crianças famélicas e que jamais saberiam o que eram carnes em seus corpos. E as que trabalhavam como bichos pra alimentar seus filhos e que não tinham tempo nem de querer casar e nem de se cortar.

Ai que vergonha ter de admitir tudo isto para aquela ilustre embaixadora de outras galáxias. Que vergonha! Eu a tinha decepcionado grandemente, suas antenas graciosas estavam murchas e seus pequenos ombros arcados. Perguntou se este não era um fenômeno passageiro e que, de repente, tudo poderia mudar. Eu, mais uma vez, disse que não queria decepcioná-la e expliquei que não estaríamos mais aqui quando isto, por ventura, acontecesse, que sentia muito. Ela perguntou, isto o quê? Ora, querida, esta grande arapuca, a grande armadilha criada pelo macharedo e estendida na vida das mulheres, que era a armadilha do amor e que as deixava burras, narcotizadas, deprimidas e imbecilizadas. A ET estava frustrada com a sua empreitada inútil, e eu expliquei que, por aqui, por agora, o seu intento seria uma missão impossível. E que não podia ajudá-la. Abraçou-me profundamente, com a piedade de quem abraça uma mulher involuída, mas sabedoura do tamanho da sua missão.

Ventava muito quando ela partiu, mal pude vê-la desaparecer entre as árvores. Voltei pra dentro de casa e continuei olhando as páginas do Face, este espelho onde as mulheres se exibem como verdadeiras retardadas e pensando, nossa, como ela envelheceu, como aquela engordou, olha o bofe que ela conseguiu, que cabelo ridículo! E foi assim que esqueci daquela visita incômoda, e pude voltar pro meu mundo anestesiado onde não resolvemos como meninas irresponsáveis a falta de compromisso com nossas próprias existências, e com as das nossas filhas, todas bastante acomodadas num mundo muito pobre onde não valemos um ovo.

 

Lélia Almeida é escritora

e escreve sobre as mulheres.

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