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Tudo é loucura, e você está louco


Nem sempre, o susto o abate abruptamente. Ele se instala, engendra-se, invade, imiscui-se, impregna. É absorvido no tecido da vida, das relações, da pele. E se infiltra. Desliza furtivamente, sub-repticiamente, venenosamente, pelos sentidos. Alguma coisa se quebra, altera-se, desfaz-se, separa.


Vem de uma realidade que aparece, clara, à luz do dia, triste, imutável e ridícula como um nariz de palhaço. Ela reaparece, insiste, reafirma-se, cinicamente, com ares de universal. E você ainda é capaz de se surpreender com a combinação dos fatos. Doentiamente, busca-os, deixando que lhe devorem. Você está zonzo e sozinho como um tolo. Assusta-se com outros rostos, com muitas vaguezas, com a ausência de uma linguagem comum. Precipita-se em uma armadilha em que você caiu ainda no tempo da crença na alegria; um tempo de embriaguez, de cegueira, de véu.

Assustado, quantas vezes não evitou o mesmo discurso, a mesma indignação filha de uma ilusão? Mas não conseguiu. E só o silêncio respondeu. Em muitas cognições, suas palavras só têm dois efeitos: assustar e romper o nada, o que nunca houve, nem como possibilidade, nem em potência. O vazio cede lugar à hostilidade da defesa, da falta de alcance. O que não existia se materializa em arrogância. E o vazio se povoa.

Seres extravagantes irrompem em seu campo de percepção: os ratos, os outros, o futuro, o que não foi, o que ainda é. Estão lá, todos os dias, e se ratificam na presença violenta, na ausência violenta, no cinismo medroso, no silêncio poltrão, nos olhares desviados. Estão nos sustos e nos desconfortos dos encontros fatais que você mesmo pressente e teme a aproximação. Estão na indiferença, mas também no alívio da distância. Seres fantásticos que beiram o irreal, a ficção, o drama, a comédia. Figuras fantásticas que riem, que olham para você, que ameaçam falar qualquer coisa, que se inflam, que se movem, que fogem, que rastejam, que são bem-vistos, que são felizes, que são alegres, que são bem-humorados, que se aceitam, inclusive, a si mesmos.

E você divide o seu cotidiano, o seu verbo, o seu ar, o seu caminho, os seus sentidos, o seu espaço com eles e seus espíritos saudáveis, infantis, limitados. Com suas caridades, suas solidariedades seletivas, sua fé, suas conveniências e suas conivências naturalizadas. Com suas orações, seus contratos, suas esperanças, suas negociações, seus medos. Com suas manias fitness, suas garrafinhas de água mineral, suas pechinchas nos mercados, seus deslumbramentos diante das vitrines dos shoppings, suas opiniões fossilizadas.

Há uma loucura no que dizem, no que calam, no que fazem, no que se eximem. Há olhares desvairados de vazio, desvairados porque esvaziados. Opacos. Há loucos sorrisos doces e olhares atenciosos que apenas o atravessam. Você é apenas um pano de fundo, um ponto- cego, um borrão. Parte de um cenário inevitável. Acusam-lhe: não sei o que você quer dizer, mas intuo aonde quer chegar e sorrio para desmerecer o que você diz e eu não entendo. Existem como se as próprias vidas justificassem-se em si mesmas: não penso, não sinto, não sou, mas não sei nada disso. Sou maior que tudo, que todos. Sou um grande favor. Não tenho obrigação de ser mais do que sou. Curve-se à minha passagem altiva, ao meu silêncio arrogante e cheio de razão. Sou um grande ser humano apesar da minha ignorância, da minha vilania, de quem me cerca. Sou filho de deus. Quase divino!

E você vive em meio à loucura. Defende-se de si, do outro, do mundo, da vida. Tenta manter-se nessa realidade da existência, mas apenas para subverter essa ordem com novas representações; o pensamento, o conhecimento, a imagem, a palavra. Volta-se à espécie, à História, à crítica, à pergunta. Para Georges Perec, o homem que dorme não aprende na solidão, nem na indiferença. Ele tenta queimar a ponte entre si e o mundo. “Mas [diz Perec] você é tão pouca coisa! Não mais que uma perturbação em uma cidade. Sua indiferença é inútil! A cada dia, sua paciência se esgota. O tempo teria de ficar parado, mas ninguém é tão forte para lutar contra o tempo.”

Nada para, muitos nascem, famílias se perpetuam; existem escolas, existe um sistema. Igrejas se mantêm de portas abertas, rachaduras aumentam nas fachadas. As mesmas sombras se sucedem nas paredes dia após dias, o banal começa e recomeça e o tempo, que sabe as respostas, ignora sua existência. Por isso, diz Perec, “Pare de falar como um homem que sonha”, porque você tem medo. Por isso mesmo, sua neutralidade não tem sentido.


Denise Macedo é polemista por vocação,

professora, Doutoranda e Mestre em Linguística,

com pesquisas na área de

Análise de Discurso Crítica

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