O remédio não chega há meses. “E se não chegar, o paciente morre?” “Sim. Semana passada, um morreu porque não conseguiu colocar gasolina no carro e voltar tantas vezes para pegar o medicamento, que nunca veio.” Nas investidas diárias na Farmácia de Alto Custo de Brasília, em busca de sobrevida, pequenos e grandes dramas e tragédias compartilhadas entre pessoas que não se conhecem, mas que se sabem no mesmo barco: o de tentar sobreviver ao tempo, às armadilhas do próprio corpo, com ou sem ajuda de familiares e de parentes, na maioria das vezes, sem; dependendo da saúde pública em um país que afunda em individualismo, em descrença, em indiferença, em corrupção.
Lá, uma recém-conhecida me conta a própria saga de pegar uma injeção que “custa uma fortuna” para o marido, “cardíaco”. Nessas quatro horas de convivência na fila, vamos nos narrando nossas histórias. Outro dia, encontrei uma senhora eloquente, olhos espertos, um lencinho preto na cabeça. Chegara lá às 5 das manhã para pegar uma senha “pelo menos antes do número 50”. Contou-me, em 15 minutos, uma história curiosa da própria infância: “Minha mãe me dizia para não brincar com os recém-chegados vizinhos, judeus, porque ‘era gente do diabo’. Eu retrucava: ‘Mas mãe, eles não têm rabo nem chifre!’ ‘É que rabos e chifres só aparecem à noite, menina.’ Fui para a festa do pijama de nossa escola, para poder passar a noite com as crianças vizinhas, e judias. Reparei bem: eles não tinham, nem um, nem outro!”
Mesmo histórias íntimas e bem sofridas ganham a luz do dia, como se aquele estranho que casualmente encontramos na batalha pela vida fosse um irmão. E é, ao menos naquele momento. Costumamos pensar que nossa própria dor não tem precedentes, mas, então, a gente lê, diz o escritor James Baldwin. Victor Hugo fez sentir a prisão do corpo e do espírito no último dia de um condenado, em um calabouço. É a vida vista de perto. Nesses espaços, assim como em hospitais, em guerras, nas ruas, estabelecem-se empatias, ainda que efêmeras, que não estabelecemos por anos com pessoas próximas. Sentir o que o outro sente é o que nos conecta. Trocam-se olhares de solidariedade, de compreensão, de constatação de nossa miséria como humanos e de nossa falência como sociedade.
A solidariedade também surge aqui e acolá. Muitas vezes, onde não se espera. Muitos relatos de “irmão que ficou com o filho para eu poder vir”, de “afilhada que veio também para pegar lugar em uma das várias filas para o medicamento”, do filho que pega remédio para a mãe, do marido que se desdobra para salvar a esposa. Muitos miseráveis, material ou psicologicamente, mas se ajudando lá, na fila de quatro horas, que alguns pegam mensalmente; outros, semanalmente; outros, trimestralmente. Os dramas variam. Outros tantos vêm de estados fronteiriços, como Minas Gerais, onde não há atendimento. Vêm e voltam semanalmente, para consultas, exames e a mesma saga de conseguir caixas de alívio em miligramas, das que dependem para viver. Na última vez em que lá estive, uma senhora com quem dividi o tempo, cansada da distância percorrida de ônibus e amargurada pela indiferença da maior parte dos filhos, disse-me com aparente sinceridade: “Se eu morasse perto de você, eu ia lá te ajudar!” Se viria mesmo, não sei, nem vou saber, mas a possibilidade do gesto ao menos desenhou-se em sua própria descrença, enquanto a maioria sequer pensa na possibilidade de perceber o outro, seja lá quem for. Estão desconectados. Acreditei, e essa crença aqueceu um frio subsolo da asa sul em uma manhã de maio.
Denise Macedo é polemista por vocação,
professora, Doutoranda e Mestre em Linguística,
com pesquisas na área de
Análise de Discurso Crítica.
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