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O reino presente de Mario Quintana


O verso é um doido cantando sozinho,

Seu assunto é o caminho, E nada mais!

O caminho que ele próprio inventa...

(Verso, Preparativos de Viagem)

Parte I –

Sempre que lia os versos do poeta Mario Quintana, reconhecia neles a leveza graciosa, a sabedoria como improviso, e vaga dolorida nostalgia, e eu me perguntava como aquele poeta-menino, e também passarinho, havia suportado reler muitas vezes, supervisionar todo o projeto e traduzir quatro volumes da epopeia densa e tumultuária [no conjunto devastadora] como a de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido. Quintana pôde trasladar-recriar pesados cartapácios para a língua portuguesa do Brasil, editados em 1948, quando era garoto de 42 anos. O nomadismo incerto de Mário Quintana havia de ter, pois, um lastro em ouro, pertenceria a uma articulação, talvez oculta, que só o caminho feito poderá revelar. Nunca busquei, entretanto, resposta para aquele estranhamento.

Foi folheando há algum tempo e relendo versos de um livro do Quintana que gosto tanto, Preparativos de viagem, de 1987, que reacendeu a minha curiosidade pelo sua artesania límpida e a emoção, agora maior do que a admiração, pela sua magia do instante, sua poética exercida ao modo das adivinhas, de versos de repentistas, para dizer só um pouco. E surpresa encontrei mais fortes os suspiros do que o riso, sentidos suspiros de amor e gemidos de saudade e mágoa, tintas da melancolia, embora contidos, seja por contenção poética, ou talvez por os haver muitas vezes renegado. Na edição que tenho em mãos (de 2013, editado pela Objetiva e organizada por Italo Moriconi), a autora do Prefácio, Ana Chiara, fala com justeza que o Quintana “mantinha o espírito jovem e irônico que marcou seu perfil-clown na poesia brasileira”.

Lendo, desejei fazer isto que raramente me habilito a fazer, comentar poesia, que é coisa difícil de nela entrar. A palavra toda ela transfigurada, condensada, exige do leitor um espírito afeito à busca da depuração formal na máxima condensação do verso, no trajeto histórico da língua e da escrita. Ainda assim eu quis registrar trechos dessa leitura, inclusive desenhos e notações que fiz, como faço nos livros que leio.

Alegre surpresa: percebi ao fim que este livro precioso, tão afeito à feição do seu autor, está completando 40 anos, neste 2017. Quatro décadas de nomadismo ancorado na poesia, sua jangada, a pura e desejada e operosa poesia. Quero celebrar aqui esse Preparativos de viagem com os leitores que venham a ler este breve memorial.

***

1. O poeta Mario Quintana foi um viajante, na mais pura e castiça acepção desta palavra. Viandante é termo do século XIII, o caminhador das vias por condição, o trovador, o cantador, o repentista. Quintana viaja o tempo todo, cotidianamente, nas palavras. Transcende cada situação para extrair o sumo, a palavra poética. Até no repouso, O sono é sempre uma viagem noturna.

Uma poesia com ar de improviso, redescoberta no instante, como um menino que vê o rei nu, ou alguém que, na busca de resolver um problema, vê a figura com a incógnita, de repente completar-se. Eureca! Essa viagem permanente de redescobrir o instante poético, alterar-condensar palavras usuais, perturbar a sintaxe, em benefício da poesia, era seu ofício, o seu amor e o seu vício.

Anoto que esse trabalho gigantesco da escrita poética não é muito notado no mundo dos viventes - entre os felizes ou infelizes. Guimarães Rosa suportou na prosa poética essa busca incessante da palavra no momento em que renasce, se decompõe e se recompõe; a palavra que era ruína antiga restaurar-se; a frase, com um simples deslocamento da pontuação, explodir em vários ângulos, obra monumental. O Rosa foi um épico, um cancioneiro provençal em pleno século XX. A coisa do Quintana é outra. Creio que o Quintana chegou à quintessência do seu estilo, a síntese da síntese no verso que, com muita frequência, é uma boutade, um susto, uma graça, um suspiro, um sereno queixume, uma saudade, um desejo, num só verso, numa frase apenas. Sempre quase sempre prosaico, do prosaísmo sublime - que teve em Bandeira o maior mestre. Uma frase, sem abandonar o poema e a poesia.

O luar é a luz do sol que está sonhando.

O que ele está dizendo? É um bom começo estranhar as palavras e buscá-las no leito onde fluem e parecem dormir. Além do deslumbre, há o refino da construção, com tão poucos elementos. O poeta não se exime de trazer o verso para o discurso poético e ali digladiar suavemente, subordinar a ilusão de ótica que é uma lei do discurso da astrofísica – ciência tão feliz nos seus estabelecimentos míticos, diria o mestre H. Haydt de Souza Mello.

Só que o Quintana o faz com um viés na oração cujo predicativo do sujeito aparece invertido; o luar, a luz emprestada ao sol, é o sujeito da oração. Essa oração que no discurso científico seria explicativa causal, quem produz o quê. A luz do sol na poesia se torna seu predicado do sujeito, e essa luz na oração subordinada ainda adquire a excelsa virtude de sonhar... É no mínimo um desarranjo na lei da física, que aliás sempre cobrou a posição subalterna da lua, satélite de um planeta terra, que também não tem luz própria. A hierarquia agora é outra, o luar rege o mundo misterioso dos sonhos.

Não haverá nenhuma criança que não fique deslumbrada entendendo a nova lei, a mais justa do universo. A noite é feita para sonhar. Não vamos dormir, crianças, vamos sonhar! Tudo o mais fica empréstimo não mais do sol à lua, mas da poesia ao nosso mundo. À paisagem lunar iluminada o poeta empresta um dos mais nobres estados, a realeza do sonho, no que os humanos somos sonhados... O luar do Quintana sonha humanamente.

Se somos tantas vezes cegos para as belezas verdadeiras, fica o verso poético iluminado, sob esse luar que nos é tão caro. O cancioneiro do Brasil, riquíssimo, já dissera muitas vezes desse luar tão belo habitando sua completude solitária, boiando no espaço, prateando a solidão dos sertões, a sonhar seus alheios sonhos, como a lua cheia morada do Santo guerreiro com a lança e seu cavalo, que nos guarda. O luar é magia da palavra para uma luz que se nos acende há milênios. E Quintana fez esse maroto jogo de encaixe, vertendo a palavra – nesse deslocamento reside a viagem, a sua viagem.

2. O Quintana avisava que vivia quase ausente deste mundo dado, até na extrema-unção estaria pensando sempre noutra coisa. Essa outra coisa é o que lhe interessa, é segredo da poesia. Esse é o árduo ofício que não cessa. O Quintana estava laborando nessa faina que o tomava quando sentiu uma rara queixa e escreveu um pequeno poema – e já vimos que o poema em Mario Quintana pode ser uma frase, um dístico ou um terceto, uma quadrinha proverbial, um hai-kai. Ou até um poema, Coração, medida do nosso tempo,

Coração que bate-bate

Antes deixes de bater!

Só num relógio é que as horas

Vão passando sem sofrer...

Era um homem ressabiado com a dor e nela não se detinha muito – talvez aqui a origem do menino e do passarinho. Dor só aparece num verso solto, nalguma inflexão na frase, quase tudo creditado na conta do eu poético. Só? A vida é louca, o mundo é triste, diz lá. E estabelece neste poema um princípio da sua poética, Só se deve morrer de puro amor. Os males do mundo não o mereciam.

No entanto, dizemos nós, do humano são as perdas, a finitude, as dores que se acumulam, além da saudade, a ceifa do tempo que foi. Mas Quintana gravou um verso-murmúrio, queixa irreparável; como um frasista sábio suspira olhando o infinito, A recordação é uma cadeira de balanço\ embalando sozinha... Quanta saudade nesse instante implosivo, ah!...

Encontrei no poema Brasa dormida uma destacada marca, quase apagada, dessa dor de viver, colocada num remoto tempo que se perde na lembrança e se funde ao sonho. Nada de infância mítica de alegria e eternidade. Como um recuerdo que ele afastasse de si, introduz o poema com um verso indicativo de distância imemorial e prossegue no esquecimento - Da minha vida o que eu lembro\ É uma\ Sucessão de janelas fechadas\ Nalgum país de sonho... Me pareceu o poema mais declaradamente pessoal, desse livro de viagem. Na retina perdida dessa idade antiga, só guardou uma imagem muda e surda, nessa edificação que não define e não entra, que não se prolonga em corredores de segredos.

3. Preparativos de viagem era o seu décimo terceiro livro de poesias, afora as antologias no Brasil e no exterior, os livros de literatura infantil e ainda os livros traduzidos a outras línguas, que já contavam antes desse livro de 87. O poeta tinha 81 anos ao sair este livro de sua longa vida, que se conclui em 1994. Aos meninos buliçosos e inquietos e também aos jovens e aos idosos que se abandonaram ao costume e ao hábito, fala este livro do menino eternamente de malas prontas, leve e ligeiro, com sua bagagem composta só dele mesmo. Nele muitos livros inscritos, de idas e vindas tatuadas pelo corpo, uma mochila nas costas só de vez em quando, era ele próprio a sua fortuna, e o estar no mundo a fonte de sua vitalidade, ele um seu arquivo vivo, e a vida a sua única esperança e companheira.

É sabida que essa condição de passageiro do homem Mario Quintana. Morou em suas últimas décadas num hotel, e quando lhe perguntavam porque vivia num quarto, respondia que ele não cabia em uma casa. Essa aspiração que não é nova; há até povos que a adotaram como regra de viver. Algum cansaço ou estranhamento fica desse viver itinerante. Por que não poderia haver uma chegada, só partida? Por que não pode erigir ou guardar na memória a velha casa, o lar, o fogareiro, a minha rua, a cidade, a terra onde vivo, a horta, a amendoeira na porta – aquela que o Drummond viu durante décadas...?

A poesia é coisa de outra ordem que o rio, o riachão da épica passa longe, a construção narrativa. Não se duvida disso, nem o poema narrativo longo não desapareceu. Está em Fernando Pessoa, Octavio Paz, Ezra Pound, Nikos Kazantzakis, Cecília Meireles e em muitos jovens poetas. Fica essa marca do provisório e da brevidade como condição, brasa dormida ainda queimando por dentro do sujeito viajor, efêmero, fazendo da dor sabedoria e ainda curioso da vida - aquele que se declara neste livro, radicalmente. Mas podemos percorrer ainda dentro do livro e buscar essa condição errante que se instaura no seu curso, como se demarca em sua poesia. Esta é a matéria da segunda parte deste meu ensaio.

Fortaleza, 21 de Agosto de 2017


Ana Maria Roland é ensaísta e leitora de

literatura, cinema e cultura. Foi professora

universitária, é Doutora em Sociologia pela

Universidade de Brasília.

É chefe-amadora de sua cozinha.

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