Em 1982, conheci a palavra noosfera, num livro de prós e contras sobre Teilhard de Chardin, um termo do qual me lembraria 12 anos depois, quando li textos de Yuri Lotman sobre semiosfera e espaço semiótico, trabalhados com empolgação e entusiasmo por Maria Helena Fávero, na Universidade de Brasília. Machado de Assis certamente habita estas esferas, onde se comemoram suas obras e, agora também, seu aniversário, no dia 21 de junho.
Dos muitos Machados, puxo o das crônicas sobre a Abolição e a Guerra de Canudos, eventos que o surpreendem aos 48 e 56 anos de idade. Nos melhores momentos, Machado “importa” para o comentário político um “narrador volúvel”, cujo amadurecimento literário nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, foi estudado por Roberto Schwarz.
Este “narrador volúvel”, que parece sempre estar brincando, desidentifica-se e se descompromete com todas as posições em disputa, até perceber qual lado será vencedor e a ele aderir.
Isso faz os discursos do “cidadão/ã” e da “cidadania” – à esquerda ou à direita – parecerem apenas ataques de “cidadanite”, como se pode denominar, com sufixo apropriado, as infecções agudas de indignação política, qual a provocada há pouco pelo Jornal Nacional, na recente adesão da Globo ao Fora Temer, que só almeja legitimar a prisão de Lula, depois do vexame de Moro na audiência do ex-presidente.
Conjuminada à hierarquização das pessoas pela textura de seu cabelo, pela tonalidade de sua pele, pela grossura de seus lábios, pelo formato de seu nariz, a “cidadanite” tem a ver com as consequências políticas da escravidão.
Lugar comum na ciência política brasileira, a reflexão sobre a inexistência ou fraqueza da sociedade civil, seu caráter “gelatinoso”, sua fraqueza, sua dependência a um Estado que deveria depender dela, jamais é associada à ideia de que a escravidão simplesmente tolhia pela base o trabalho livre, a base do livre encontro das pessoas na dita sociedade civil, termo que designa a esfera onde as pessoas se encontram para satisfazer as necessidades trocando o que cada uma produz.
Isso aprendi no excerto da Filosofia do Direito de Hegel, sobre a sociedade civil burguesa, numa edição portuguesa, de 1974, prefaciada admiravelmente por Henri Lefebvre e traduzida do francês por, vejam só, José Saramago. Descobri o livrinho quando, em companhia de Gustavo Freire e Rogério Diniz Junqueira, fizemos reuniões para estudar Gramsci, sob orientação do então reintegrado Roberto Décio de Las Casas, em 1988.
Mas não foi um Machadão, pós-Brás Cubas, que me cortou o caminho na semana passada, quando eu me dirigia à agência da Caixa que fica na Gráfica do Senado, à procura de um FGTS inativo e já comprometido por dívidas na hegeliana ou marxista esfera da sociedade civil. Não foi esse Machado, mas um Machadinho debutante, anterior mesmo aos primeiros romances.
Um Machadinho inserido como menor aprendiz na tipografia de Paula Brito, editor negro no Império. Um Machadinho que fez uma espécie de transição de gênero – do trabalho manual para o trabalho intelectual –, realmente fixada quando publica A Reforma pelo Jornal, texto com o qual praticamente debutou como articulista, aos 20 anos, em O Espelho, cujas edições foram reunidas em fac-símile pela Biblioteca Nacional.
Em verdade vos digo, Machado aos vinte anos esboça uma teoria dialógica do jornal que só encontra paralelo no célebre ensaio de Walter Benjamin sobre o autor como produtor, em 1934, quando evoca a obra de Serguei Tretiakov, na empolgação com caminhos abertos pela revolução russa. Acho até que a ausência dessa crônica na seleta machadiana publicada sobre O Jornal e o Livro depõe contra a Penguin Books.
Pois sim, à procura da Caixa, para saldar a dívida na “esfera das necessidades” – não na noosfera nem na semiosfera – ouvi um grito parado no ar. Vinha dos colegas de tipografia de Machadinho, eternizados num painel Jonas Melo, cujas dimensões são aproximadas às do Cinco, de Newton Scheufler, mas contínuo e situado ao rés-do-chão, num estacionamento para vinte motos que o ocultam e já o mancharam com os pneus, quando não havia proteção.
Descobri o trabalho de Jonas como Cabral descobriu o Brasil. Ou seja, sem descobrir nada quando cheguei, em 2017, a um painel datado de 2014, até então invisível a meus olhos insensíveis a uma pequena guernica que nasceu da oportunidade de Jonas trabalhar o tema da “imprensa”. Evocando letras, máquinas, cenas e gestos de trabalho, imprimiu sentido tão agônico – ou antagônico – que “imprensa” de substantivo da instituição homenageada a verbo cruel de uma instituição que imprensa, oprime.
De calça e camisa brancas, cinto escuro, ao estilo médico, imagino um Ruy Mauro Marini cofiando o bigode, e sorrindo, filosófico – “superexploração”. Mas só Edson Lopes Cardoso – além da cúmplice jornalista negra Ramíla Moura, colega de trabalho – compartilharia minha fixação nas figuras de negritude magistralmente assinalada que representam operários superexplorados, sim, mas sobretudo operários cuja possibilidade integração à sociedade de classes – a sociedade civil burguesa! – o racismo precaveu de acontecer, subordinou, disciplinou.
Acho notável, notável, o talento artístico de Jonas, que não deixou a baleia – a branca, não a azul nem a bíblica – engolir os companheirinhos de Machado por quem nem os sinos dobraram – como tão bonito puderam dobrar pelo sineiro da Glória, na glória final da última crônica de Machado de que tenho notícia, publicada a 4 de novembro de 1900, a dois anos de D. Casmurro, primeira obra publicada em livro.
(Fotos ilustrativas de autoria de Lunde Braghini)
Lunde Braghini é jornalista, mestre em comunicação (UnB),
ex-professor do Centro Universitário de Brasília (UniCeub)
e da Universidade Católica de Brasília (UCB),
diz-se inimigo do racismo, da homofobia, do sexismo,
do racismo de novo, e do capitalismo.
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