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Jarid, Raimilda e a Lei Distrital 1507/1997


Aqualtune, Dandara, Zacimba Gaba, Tereza de Benguela, Esperança Garcia, Na Agontimé, Eva Maria do Bonsucesso, Maria Felipa, Luísa Mahin, Mariana Crioula, Maria Firmina, Tia Ciata, Antonieta de Barros, Laudelina de Campos Melo e, mais novinha, Carolina Maria de Jesus, entraram para a história mais ou menos nessa ordem de nascimentos e acontecimentos da luta contra o racismo.

Neste 25 de julho – Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra e Dia Internacional da Mulher Negra latino-Americana e Caribenha – são nomes que entram na sua timeline por conta da autora de Heroínas Negras Brasileiras: 15 histórias em cordel (São Paulo: Pólen, 2017), Jarid Arraes, cuja presença em Brasília, para a audiência pública que a Procuradoria Especial da Mulher do Senado organizou em homenagem ao Julho das Pretas, um adoecimento impediu.

Coube à jornalista e dançarina negra Joceline Gomes ler o cordel de Jarid em homenagem a Tereza de Benguela, nome que alcancei a primeira vez somente em 1999, como Tereza do Quariterê, em conversa com participantes mato-grossenses do pioneiro curso de administração pública para lideranças negras realizado na Escola Nacional de Administração Pública, por iniciativa de Regina Adami e Edson Lopes Cardoso.

Quatro ou cinco anos depois, a jornalista Dani Agne me enviaria recorte, talvez de Marie Claire, segundo o qual Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira capital de Mato Grosso, foi uma cidade em que a Abolição aconteceu em 1822, graças ao legado de Tereza, fato que faz a urgência de estudar Vila Bela tão grande quanto a de investigar Anápolis, terra de Carlinhos Cachoeira, Henrique Meireles e, me dizem, Joesley Batista (crescido lá, nascido em Formosa).

Não foi em vão que Joceline nos disse, durante a audiência pública, que negras e negros descendem de reis e rainhas. Contei sete rainhas e princesas em Heroínas Negras Brasileiras: Aqualtune, Dandara, Zacimba Gaba, Tereza de Benguela, Na Agontimé, Luísa Mahin e Mariana Crioula.

Dividem o espaço com mulheres negras que abriram escolas, fundaram jornais, foram pioneiras na política e na escrita de romances, peitaram brancos na feira e ganharam na justiça, realizaram denúncias da violência escravocrata, organizaram associações e sindicatos, fizeram guerrilha, militaram no movimento negro e defenderam o candomblé – gente como Antonieta Barros, Eva Maria do Bonsucesso, Esperança Garcia, Laudelina de Campos Melo, Carolina Maria de Jesus, Maria Felipa e Tia Ciata.

A Gabriela Pires, um dos nomes na ficha técnica exclusivamente feminina do livro editado pela editora Pólen, coube a tarefa de ilustrar o livro de Jarid na linguagem da madeira, à maneira de xilogravura, para nos dar imagens de pessoas cujas histórias ignorávamos, algumas delas sem nenhum capital iconográfico acumulado, pois a destituição de imagem tem a ver com o apagamento de figuras e negação de valores.

Faço ideia de que Gabriela possa ter trabalhado as xilogravuras com filtros de imagem, tal como Ramíla Moura, minha colega de trabalho fez com a fotografia de Raimilda Bispo dos Santos, feita por Edilson Rodrigues. Tanto Ramíla quanto Raimilda foram modelos de fotógrafos amadores ou profissionais que trabalharam voluntariamente a fotografia de 35 mulheres negras do Senado, em iniciativa do Comitê Pró Equidade de Gênero e Raça do Senado.

Do nada, lembro-me de 1995, quando Veja entrevistou extensamente Edson Lopes Cardoso, por organizar a Marcha Zumbi dos Palmares, para não publicar nada depois – e Edson foi perguntado se não tinha uma “foto” de Zumbi. Descrições, testemunhos, devem ter gerado a iconografia de desenhos e pinturas Zumbi, continuada em bustos como o que há na frente do CONIC, aqui em Brasília.

Naquele ano, além de monitorado pela imprensa, Edson era espionado: a casa onde morava com Regina, Inaê e Tana foi arrombada, teve as prateleiras de livros varejadas e, o telefone, danificado; uma mala foi extraviada, em retorno de reunião com negros no Uruguai. Mas só um ano depois, matéria do Correio Braziliense, de setembro de 1996, transcreveria – mais menosprezando que denunciando – relatórios de agente policial infiltrado num curso de extensão que Edson ministrava na Universidade de Brasília para ganhar o pão.

Em novembro de 1995, a Marcha mobilizou cerca de 35 mil negros e negras que entregaram ao presidente Fernando Henrique Cardoso, pelas mãos de Edson, uma histórica reivindicação de políticas de ação afirmativa e defesa da vida. O movimento negro marcharia também em 2005 e 2015, com as mulheres à frente, em defesa da vida, essa coisa tão óbvia, cuja negação coletiva a um grupo de sujeitos e sujeitas é da essência do genocídio.

Ato seguinte à Marcha, Edson e Regina criaram o Ìrohìn, sob forma de um boletim de acompanhamento de políticas públicas para a população negra. Depois, o Ìrohìn ganhou formato de jornal e hoje dá nome a um centro de estudos e pesquisas, em Salvador, alicerçado no acervo único de livros e documentos colecionados ao longo de uma vida dedicada a honrar a suspeita subversiva da polícia.

Pois, sim, foi numa das primeiras edições que o Ìrohìn transcreveu projeto de lei distrital apresentado no primeiro aniversário da Marcha, com o fim de garantir presença de negras e negros na publicidade, e transformado na Lei 1507/1997, de 3 de julho de 1997, que vale transcrever:

LEI Nº 1.507, DE 3 DE JULHO DE 1997

(Autoria do Projeto: Deputado Eurípedes Camargo)

Dispõe sobre a representação étnica na publicidade veiculada no Distrito Federal e dá outras providências.

O GOVERNADOR DO DISTRITO FEDERAL,

Faço saber que a Câmara Legislativa do Distrito Federal decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º As propagandas veiculadas nos meios de comunicação do Distrito Federal deverão obedecer ao critério de proporcionalidade da representação étnica da população brasileira sempre que se fizer necessária a presença do elemento humano.

Parágrafo único. Quando apenas um indivíduo figurar na propaganda, esta deverá empregar alternadamente pessoas de etnias distintas, obedecida a devida proporção.

Art. 2º A proporcionalidade étnica deverá obedecer à última pesquisa censitária divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, realizada no âmbito do Distrito Federal.

Art. 3º Nenhum grupo étnico ou integrante de grupo étnico será apresentado de forma depreciativa ou terá aspectos peculiares explorados de modo a reforçar atitudes de rejeição ou antipatia.

Art. 4º Serão criados mecanismos para coibir o descumprimento desta Lei.

Parágrafo único. Toda a arrecadação proveniente de multas será destinada a fundos de apoio ao combate à discriminação racial.

Art. 5º O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de trinta dias.

Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 7º Revogam-se as disposições em contrário.

Brasília, 3 de julho de 1997

109º da República e 38º de Brasília

CRISTOVAM BUARQUE

(Este texto não substitui o publicado no Diário Oficial do Distrito Federal, de 4/7/1997)

Gente que gosta o paradoxo e da ironia, como eu, não pode deixar de reparar que a lei que incentiva a visibilidade negra é uma das menos visíveis do Distrito Federal, e que problemas de “engenharia” devem ter impedido, há já vinte anos, a criação dos “mecanismos” mencionados no art. 4º – sintomas de que disposição a favor da luta negra digladia com as disposições não revogadas.


Lunde Braghini é jornalista, mestre em comunicação (UnB),

ex-professor do Centro Universitário de Brasília (UniCeub)

e da Universidade Católica de Brasília (UCB),

diz-se inimigo do racismo, da homofobia, do sexismo,

do racismo de novo, e do capitalismo

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