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Figura Humana, Figurinos de Gente e Marcos Temporais

Atualizado: 13 de out. de 2018


Tenho vontade de ir ao Museu dos Correios ver a exposição de Pedro de Andrade Alvim e de voltar ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), para rever a exposição das pinturas do Masp. A matéria de Bernardo Scartezini, na coluna Plástica, do jornal Metrópoles, me levou ao artigo “Das estepes da Lapônia à selva amazônica: viagens do pintor François-Auguste Biard em 1839 e 1859”, gratíssima experiência de leitura, que me pôs na companhia de Leónie d’Aunet, do missionário sueco Laestadius e do guia mura Policarpo.

Escritora e companheira de Biard, D’Aunet o acompanha na expedição à Lapônia, onde seu figurino feminino desagrada o pastor e botânico Laestadius. Já Policarpo, um guia indígena de uma tribo maldita na região, por rival dos Mundurukus, crescentemente torna-se maldito também aos olhos de Biard, seu contratador, ao não se encaixar no seu figurino de gente.

O texto de Pedro nasceu de uma tese defendida na França, há 17 anos, intitulada O Mundo como Espetáculo. Foi já aos 60 anos de idade que Biard veio para o Brasil, em 1858, e registrou seu périplo de dois anos em diário publicado com 180 gravuras feitas por E. Riou, ilustrador de Júlio Verne, com base nos croquis do pintor expedicionário.

A obra de 697 páginas é publicada em 1862, a um ano da polêmica em torno do “Desjejum sobre a Relva”, de Manet – sujeito estudado por Pedro no mestrado. A recusa da obra no Salão de Paris geraria o Salão dos Recusados, um capítulo da história da pintura, disciplina cujas páginas se podem folhear percorrendo a exposição “Entre Nós – a figura humana no acervo do Masp”, merecedora de um belo comentário de Newton Scheufler aqui na Casa da Mão.

Inserido numa corrente dominante na pintura, cujo gosto mudava, e já ironizado como “homem universal” numa resenha de Baudelaire sobre o Salão de 1846, Biard tinha uma “potência imaginativa”, segundo Pedro, que “serviu ao processamento de experiências genuínas”, mesmo involuntárias, como imagino o encontro com o próprio Policarpo, enquadrado na narrativa de Pedro sob a ótica da dialética do senhor e do escravo.

Um exemplar de “Deux Annés au Brésil” consta da Brasiliana de José Mindlin e pode ser lido na internet, com a grande vantagem de que o sistema de busca indexa as imagens, das quais, pelo menos três – 84, 155, 175 –, são de Policarpo, pilhado no comportamento ladino e em maus lençóis, no sentido figurado.

Lélia Gonzalez gostava de falar em “América Ladina” e em “Améfrica”, para fugir da fórmula da América Latina e da latinidade forjada pelo interesse francês, mais ou menos àquela década, de justificar a pretensão de Maximiliano sobre o México, que durou de 1864 a 1867, ano do fuzilamento – agora sesquicentenário – do imperador, um acontecimento de impacto representado em tela por Manet, três anos depois.

Lélia foi professora, no secundário, de Ivany Neiva, historiadora próxima do universo da Casa da Mão. Eu a vi pessoalmente uma única vez, em 1985, em mesa-redonda com Roque Laraia – orientador da dissertação de Antropologia de Newton Scheufler – e com Carlos Hasenbalg, no mesmo dia em que vi e ouvi Edson Lopes Cardoso, por definitiva vez, em substantiva intervenção que é parcialmente a outra pessoa atribuída na edição no livro nascido do seminário organizado pelo sociólogo João Gabriel Lima Teixeira, falecido em abril deste ano.

Intitulado “A Construção da Cidadania” (UnB, 1986), o volume integra uma série de três títulos relacionados à universidade e à Constituinte. Reúne uma série de campeões da democracia, alguns já mortos (como Hasenbalg e Lélia), uns presos, a maioria solta. As mesas traziam a perspectiva do movimento operário, do movimento camponês, do movimento negro, do movimento de mulheres, do movimento indígena, do movimento homossexual e agradariam em cheio ao historiador Manoel Neto.

Como há muitos Manoéis Netos de pia e mais de um intelectual nato, refiro-me ao coordenador do Centro de Estudos Euclydes da Cunha, da Universidade Estadual da Bahia, e diretor, junto com Lucas Vianna, do documentário “Feminino Cangaço” (1916). Estudioso mais conselheirista que euclidiano, ele teve seu dia de turista acidental em Brasília, um dia após gravar para dois programas da TV Senado – já na internet – e de participar de uma roda de conversa sobre o papel das mulheres no cangaço.

Historiadores do futuro hão de achar os indícios da passagem de Manoel Neto por Brasília neste artigo da Casa da Mão, que salva do esquecimento quatro das três dezenas de fotografias compartilhadas no WhatsApp por seu autor. O futuro só terá o registro verbal da imagem de Manoel Neto ao lado da fotografia de Louis Armstrong, Juscelino Kubistchek e Grande Otelo, no Memorial JK, entre as demais. Restará a presença imagética de Manoel Neto na LBV, ao lado de um oxímoro – a elite de um país é seu povo – vertido em duas línguas mais; ao lado do busto de Tiradentes e de Bruno Giorgi, no Panteão dos Heróis e Heroínas; e à frente do Congresso Nacional, perto de mulher trabalhando em situação difícil.

Para mim, o clichê turístico se sustenta como experiência genuína, se não de arte, pelo menos de leitura de um modo contemporâneo de construção da figura humana. As fotos foram produzidas por Francisco Miguel Lopes da Silva, cicerone de Miguel Neto, e artífice da vinda do historiador, idealizada pela ex-deputada estadual baiana Zezé Rocha, intelectual anisiana que deixou a política pela educação – ou por educação – e se radicou em Brasília.

Confesso má vontade com a arquitetura de alguns prédios em Brasília, como o Brasília Shopping, o Bloco M da Universidade Católica de Brasília e o prédio da Legião da Boa Vontade. O prédio universitário onde se situa o fabuloso Cinco, de Newton Scheufler, tem um bonito pátio interno; do shopping, de nada me lembro em especial; mas me salta aos olhos a frase legionária para lembrar que a democracia não pode ser assunto de campeões: “a elite de um país é seu povo”.

Professor muitos anos, eu costumava me referir a uma fala de Florestan Fernandes, no antigo Ministério da Educação pré-Brasília, em 1954, em abordagem sobre o papel da educação na formação das elites. Florestan dizia que o Brasil não formava, apenas improvisava elites, ao tentar ilustrar privilegiados socioeconômicos (uma elite econômica) com as prendas da cultura (uma “elite” cultural).

Formar uma elite de verdade, para Florestan, pressuporia dar chance a todos (hoje tod@s), para ver quem seria selecionad@, peneirad@, escolhid@, segundo, inclusive, credo constitucional antigo. Jornalistas brasileiros negros do século XIX faziam questão de frisar parágrafo do Art. 179 da constituição imperial segundo o qual o acesso a cargos públicos, civis ou militares, deveria ser feito de acordo apenas com as capacidades e méritos de cada um.

Noutro cromo, a fotografia de Miguel me aproxima do busto de Tiradentes, do qual nunca cheguei perto por desconhecimento, por desatenção e mesmo por desprezo pela coisa do heroísmo e do turismo oficial. Tinha cá para mim que Tiradentes nascera em 1749, não em 1746. Quando era professor, frisava 1750 como uma data-chave para a formação do Brasil, escudado em Antonio Candido e em Fernando Novais, e não 1500, que é marco temporal do genocídio indígena e africano e também da constituição dessa faixa do império colonial português, em desagregação, assim como colonialismo primeiro, 250 anos depois.

Não por acaso, toda a turma que faria a história da imprensa no Brasil nasce após 1750, inclusive, Hipólito da Costa (1774), Cipriano Barata (1862) e o Visconde de Cairu (1856), introdutor da economia política no Brasil. Lopes Gama, um favorito, é de 1791; Frei Caneca, outro, de 1779; Líbero Badaró, menos, de 1798, mesmo ano do nascimento de Biard.

Miguel faz seu piquenique sobre a relva à frente do Congresso Nacional com a ajuda involuntária de uma moça que trabalha em dificuldades. Numa das fotos, em que a moldura censura lateralmente a modelo, a sombra de Manoel Neto rima com a rampa do Congresso e com o pequeno ângulo da bandeira, transversalmente aos eixos verticais das Torres Gêmeas e da espinha ereta do historiador. Na outra, Manoel tem, às costas, a moça, que trabalha ante um iluminador e um fotógrafo que projeta sua sombra. Policrômica como a bandeira brasileira, muito ao fundo, ela é observada pelo iluminador, pelo fotógrafo, por Miguel, que também projeta sua sombra e, agora, nós.

Por fim, saio da Praça dos Três Poderes e volto ao trabalho, em cuja lousa branca, Kayla (há 1.813 assim chamadas no país, segundo a ferramenta do IBGE, mais concentradas em Roraima), filha de Isis, assessora política da Procuradoria Especial da Mulher do Senado, refaz parte do caminho que a humanidade trilhou no registro iconográfico, tema abordado por Gilda de Mello e Souza numa série de artigos publicados há 61 anos na “Revista de Psicologia” e republicados em “Exercícios de Leitura”, em 1980, sob o título “O Desenho Primitivo”.

Pois sim. Estão ali, no desenho de Kayla, pegadas da humanidade no percurso de representação da figura humana, notadamente, na preocupação de representar os/as sujeitos/as segundo um esquema mais intelectual que visual, assinalando mais um saber que uma visão, trabalhando com a operação de mais de uma perspectiva – como os pés segundo vistos lateralmente – os traços necessários (inclusive, de estatura e de gênero, vide a irmãzinha que começa a andar), sem os quais uma figura humana não o seria.

São elementos do esforço intelectual realizado pelas crianças na leitura e na representação do mundo. O texto de Gilda faz ótima figura ao lado de referências como a “Doutrina das Semelhanças”, de Walter Benjamin, e dos muitos textos de Emília Ferreiro – a psicolinguista piagetiana a quem, em São Carlos, vi Ada Natal Rodrigues, pioneira da UnB e última pessoa cassada pelo AI-5 na USP, se referir como Emília Guerreiro, por simpatia política –, mas Gilda se concentra no desenho figurativo, deixando de lado a gênese do desenho geométrico, tema dileto do etnomatemático Paulus Gerdes, holandês radicado em Moçambique que morreu em dezembro de 1914, um mês após o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg, que renovara o estudo sobre o racismo no Brasil.


Lunde Braghini é jornalista, mestre em comunicação (UnB),

ex-professor do Centro Universitário de Brasília (UniCeub)

e da Universidade Católica de Brasília (UCB),

diz-se inimigo do racismo, da homofobia, do sexismo,

do racismo de novo, e do capitalismo

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