A consulente que marcou hora para hoje às 9h foi minha colega de infância, da época do colégio e crescemos juntas brincando, estudando, namorando os meninos da nossa idade, indo a bailes e aniversários e todas estas coisas que compõem a vida simples das moças do interior.
O encontro foi feliz e carinhoso, como se estivéssemos tendo uma chance de voltar no tempo. Nos perguntamos das famílias, dos pais velhinhos, dos maridos, ex-maridos, filhos, netos e embaralhei as cartas com lentidão para espichar a conversa que atualizava a doçura daqueles tempos. Temos a mesma idade, 55 anos, estamos bem de saúde e com uma alegria sincera de quem aceita e aprecia a vida.
É a primeira vez que ela abre o Tarot e diz que só veio porque era comigo e que confiava em mim. Abro sobre a mesa o antigo xale de seda preto, e explico que vamos dar uma olhada geral nas cartas e que depois ela poderá fazer perguntas.
A primeira carta que abre o jogo é a carta da Lua. Começo a explicar que este arcano pode indicar situações de tristeza, insegurança, uma certa nostalgia ou até mesmo dores do passado.
Ela endurece a expressão e diz com voz firme: sim, eu sei do que se trata. E tira da bolsa duas fotos, uma em preto e branco e outra de um colorido desbotado. Na primeira ela está numa festa de aniversário. O pai está sentado e ela, pequena, entre as pernas dele, tem o olhar enamorado. Próxima deles, em pé, assistindo a cena, a mãe sorri observando os dois. Consta que foi ela quem chamou o fotógrafo para registrar o momento. Na outra foto, minha amiga está no Clube da cidade onde acabou de ganhar, numa competição entre moças, o título da mais bela e, por isto, carrega uma braçada de flores que entrega para a mãe. As duas sorriem comemorando a conquista, o sorriso da mãe embevecida acarinhando o queixo da mais bela filha.
Estas são as fotos que estão, agora, ao lado das cartas. Os olhos dela ficam inexpressivos e distantes e a voz sumida me lembra a da menina de outrora.
– Eu fui violentada com 14 anos, na festa de 15 anos da Silvinha, o primo dela de 18 anos me ofereceu cerveja toda a noite e depois me trancou no carro, uma Brasília branca e eu não tinha a menor noção do que estava acontecendo. Cheguei em casa com os joelhos ralados e sangrando muito, coloquei o vestido manchado no bidê com sabão em pó e disse para a minha mãe que tinha menstruado. Sentia muitas dores e fui dormir aterrorizada. Contei para a Eva, a empregada, que me disse que era assim mesmo, que acontece, e que eu rezasse pra não estar grávida.
E dessas coisas que acontecem, ela foi desfiando as lembranças, como a do médico endocrinologista que frequentava uma vez por mês para emagrecer e que tocava e beijava seus seios e dizia que eram belos como os da Maria Schneider, que ela não sabia quem era. E saía da consulta com a receita de Hipofagin, excitada e assustada. E ele dizia, não se assuste, estas coisas acontecem. Um dia ele disse que onde se ganha o pão não se come carne e que ia encaminhá-la para outro médico.
Depois contou da separação do primeiro marido que queria sexo todas as noites e que ela não suportava aquele frenesi, “se eu fosse dizer para ele porque não queria dar pra ele, ia levar tanto tempo e ele, assim mesmo não ia entender, então eu dava e me livrava do assunto”. E que estas coisas acontecem com todas as mulheres.
A voz sumida ganha corpo e ela diz que a vida é assim, que sempre foi assim para todas as mulheres. A mãe, por exemplo, sonhava em ser uma Médica Sem Fronteiras e cuidar de pessoas vulneráveis na África, nunca desejou casar. Não foi. Casou e teve quatro filhos. Parecia uma galinha louca e perdida, ciscando ao redor dos pintos, longe da África e dos seus sonhos.
Mas cuidou primorosamente das filhas mulheres ensinando-as da importância de serem belas e magras para ganharem faixas das mais belas moças da cidade e conseguirem assim bons e produtivos casamentos. Enterraram sabe-se lá onde seus mais recônditos desejos nas terras daqueles senhores que eram iniciados sexualmente com as éguas, as porcas, as chinas. E que isto também acontece.
“Mas eu vim mesmo aqui porque encontrei, tem uns meses, o amor da minha vida, agora na maturidade, quando nem sonhava mais com isto, parecia um sonho, como num filme. Até que ele começou a sair de noite e voltar tarde. Quando reclamei ele me encerrou num quarto da casa onde guardava caixas de isopor empilhadas, com as vacinas para os bois. E onde, no centro do quarto, tinha um altar com o retrato da mulher que morrera. Ele me abraçou por trás imobilizando os meus braços e disse com muita suavidade que eu olhasse bem para aquela foto que estava ao lado de uma vela imorredoura, porque ali estava um exemplo de mulher, que merecia respeito porque nunca reclamava de nada. Ao redor da foto, objetos simples destes que adornam as mulheres, um grampo cor de rosa, uma pulseira de prata com coraçõezinhos encaixados, um anel com uma pequena pedra vermelha e uma sandália, uma só, verde, embarrada e com o salto quebrado. Ele me explicou com a mesma voz suave que ela era a verdadeira dona daquela casa e que eu tinha de respeitar a sua memória e reverenciá-la. Passei a noite com frio e medo e quando consegui fugir, pela manhã, senti a mesma dor física, o medo e a vergonha depois que saí mancando da Brasília branca. E entendi que as mulheres se suicidarem por conta de maridos cruéis também é uma coisa que acontece.” Veio olhar as cartas porque precisava contar esta história para que alguém acreditasse nela.
Não consegui finalizar a consulta. Tomamos chá de baunilha, em silêncio. As fotos me enfeitiçaram em meio a fumaça da água quente e cheirosa. Olhei-as novamente. A mãe da menina, sua felicidade, seu orgulho, olhando a menina com o pai, e sua alegria triunfante olhando para a filha amada vencedora, pronta e bela para ser entregue em sacrifício. Quem visse a foto poderia perguntar-se se há, neste mundo, mãe mais eficiente e amorosa que aquela.
E estas coisas acontecem.
Lélia Almeida é escritora
e escreve sobre as mulheres.
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