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Foto do escritorDenise Macedo

A Memória, a História e o Risco do Silêncio


Um texto de Denise Macedo


Lembrar e esquecer. Memória individual e memória coletiva selecionam o que o espírito suporta guardar e o que a História pode contar. O que a mente escolhe reter para compor os recortes de nossa história individual? O que museus, arquivos e antigas coleções nos permitem ter como passado? Memória e História não são a verdade desses passados. Podem ser uma escolha dessa representação. O esquecimento pode ser a estratégia de sobrevivência de um indivíduo ou uma arma política para manter reprimida a expressão da dor de um povo.

Esquecimento: maldição ou bênção? Buñuel ficou marcado pelas deslembranças da mãe, que perdeu a memória pouco a pouco. Lia a mesma revista repetidamente, com o mesmo interesse; recebia o filho várias vezes, no espaço de apenas um minuto, como se fosse sempre a primeira vez após longa ausência. Até que esqueceu seu próprio nome, e o do filho, e todo o resto. Justamente quando mais tem coisas para guardar, a memória começa a faltar: medo, proteção, vontade, idade. Perder as memórias mais próximas, as dos últimos meses, aquelas de toda uma vida: amnésia anterógrada, amnésia anterorretrógrada e amnésia retrógrada. Esta vitimou a mãe de Buñuel. O desaparecimento total.

Estar vivo e saber-se gradualmente desmemoriado é uma angústia. Para o sobrevivente da agressão do filho, para o sobrevivente de Auschwitz com um número tatuado no braço, para o sobrevivente dos porões da ditadura militar no Brasil, do apartheid na África, da guerra do Vietnam, da bomba de Hiroshima, dos conflitos de Ruanda, porém, o esquecimento pode ser a única forma de continuar a viver. Para os agredidos, esquecer é livrar-se de memórias que perseguem, de pesadelos, de fantasmas. O esquecimento de tanta injúria é o remédio. Cioran escreveu: aquele que registrasse na memória todos os sofrimentos de apenas um instante seria a maior vítima da história do sentimento; sucumbiria. A vida, diz ele, só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória. Dessas lacunas vem nossa força porque cada coração aguenta apenas certa quantidade de sofrimento. Nossa resistência tem limites físicos, e nossa memória o sabe.

Mas o esquecimento pode ser também a única forma de governar. Não por outro motivo, a História registra queima de papiros, de livros, de arquivos, de bibliotecas, de pessoas. A imposição do silenciamento. Ao encarcerar Gramsci, Mussolini teria dito: “É preciso calar essa mente”. Esquecer a denúncia das engrenagens de séculos de exploração. Recentemente, a Áustria decidiu demolir a casa onde nasceu Hitler, na pequena cidade Braunau am Inn. Quem defendia a transformação da casa em museu foi vencido pelo poder, que decidiu erguer ali um centro beneficente. É quando a escolha tenta selecionar o que será lembrado ali. Nesses casos, nada.

Para quem está condenado a não esquecer, uma escolha se impõe: engajar-se ou silenciar-se. Atrocidades ocorreram na História e ainda ocorrem perante nossos olhos. Elas ficam impressas na memória e no espírito de uma pessoa ou de uma nação, a menos que tenhamos atingido o nível de indiferença que nos iguala aos aniquiladores. Nossa memória tem fronteiras que nem sempre podemos ultrapassar, mas a História, não. Violências contra indivíduos, etnias, raças, povos inteiros se entrelaçam no tecido que forma nossas relações. Por isso, há muito o que ser sempre lembrado, pois o silêncio de quem se lembra reforça uma cegueira moral e salva a pele dos covardes à custa da dignidade humana e da justiça.

Apesar das limitações das representações narrativas do horror que cometem aqueles que ultrapassam qualquer limite moral, a História deve ser contada. O que muitas memórias não conseguem reter porque causa dor deve ser denunciado, para servir de testemunho e evitar a repetição. Felizmente, nossa memória excede tentativas de controle. Daí a historiografia da violência e da humilhação, dai os Cadernos do Cárcere, daí este texto. Deslembrar pode ser defesa ou estratégia. Lembrar pode ser vital.

 

Denise Macedo é polemista por vocação,

professora, Doutoranda e Mestre em Linguística,

com pesquisas na área de

Análise de Discurso Crítica

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