A imagem faz parte do mundo, especialmente, do mundo da Arte. É difícil dizer o que é arte, mas mesmo os leigos apontam: Mona Lisa, Nona Sinfonia de Beethoven, Estátua de Davi. Eles sabem, ainda que intuitivamente, que uma das características da obra de arte é levar à contemplação, pois ela nos coloca diante de nossas emoções, mas também de nossa razão, da qual dependemos para ordenar nossas ideias quando queremos exprimir o impacto que nos causam determinadas obras. Estabelece-se um jogo de razão e de não razão: a análise, a emoção; o espanto, a associação; a intuição, a sedução e a comparação.
O professor e artista plástico Newton Scheufler já disse que a arte não pretende atender a nenhuma utilidade prática; ela atende a uma necessidade estética do ser humano. Essa necessidade estética explica os intensos diálogos que estabelecemos com imagens, como as obras de Victor Brecheret. Várias delas estão nos longos vãos internos, destituídos de pilares de sustentação, no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Em jardins de Burle Max, Nu Deitado e Banho de Sol. Outras também estão lá, imortalizando a geometria brasileira com linguagem vanguardista e nacionalista. Algumas delas apresentam tratamento naturalista da anatomia e contida dramaticidade em torções do corpo e de volumes trabalhados em luz e em sombras.
Nas representações do feminino, o artista foi abandonando as formas francesas para retratar características brasileiras, criando personagens mais rústicas, com pés e mãos maiores. A atitude de suas figuras continua lânguida. Elas parecem distantes do mundo, mergulhadas em profundos pensamentos. Revelam o poder estético de concentrar técnica em imagens de posições sensuais e, ao mesmo tempo, indolentes e preguiçosas. Foi com a extraordinária escultura tumular Musa Impassível que Brecheret conquistou uma bolsa de estudo do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo. A obra foi feita para compor o túmulo da poetisa Francisca Julia da Silva.
A Musa Impassível é uma mistura de belo, de sublime e de divino. Há, nela, uma ambiguidade de vida e de morte criada talvez pela dicotomia corpo e alma que suas formas e sua cor anunciam. A fluidez de sua veste sugere existir, por baixo delas, um corpo ainda latente, vivo, mas sua expressão distante indica a ausência, a imobilidade, o inatingível. Seus olhos fechados sugerem morte. Suas mãos, grandes, retraem-se. O material de que foi feita – o mármore indestrutível, ao contrário da frágil carne humana –; a cor – o frio branco, em vez de cores pulsantes –; a forma como foi esculpida aferem dramaticidade à interação.
O impacto que causa a musa de Brecheret é indelével. Quando se a observa, o ângulo que se estabelece é de cima para baixo, é o ângulo do total poder. Ele favorece a narrativa, o drama da escultura. Da posição de observadores, a seus pés, nós a lemos de baixo para cima. À medida que se a escrutina, dos pés à cabeça, percorre-se um caminho que vai do terreno ao deífico.
Embora esteja de frente para o observador, ela não o olha. Ela não estabelece contato direto com quem a observa. Seus olhos e seus lábios estão cerrados; suas mãos estão voltadas para o mármore que a suporta. A musa de Brecheret não olha, não sorri, não acolhe ou convida o espectador com gestos. Apesar disso (ou justamente por isso), suas dimensões, sua notoriedade, suas formas e força psicológica, mesmo seu silêncio e sua quase ausência falam: do decorrer do tempo, da fragilidade humana, do silêncio do (nosso) fim. Nós, em algum momento e inexoravelmente, faremos parte do mundo dela. A postura da musa de Brecheret é a de quem calmamente nos aguarda, esperando nossa vez de participar de um ato mortal, desconhecido, definitivo. Diante dela, estamos sós, face a face com nosso destino, cujo desenrolar não prevemos, mas temos certo o fim. Sem alternativas, sem argumentos, sem apelos, sem a possibilidade de relutar, postamo-nos diante da imagem do inexorável. Perscrutá-la é investigar a passagem do tempo, a efemeridade da vida. Estar diante da Musa Impassível é inspecionar a morte.
Independentemente da interpretação de cada um, a Musa Impassível está ali, de forma incondicional, absoluta. Mantém-nos gravitando em sua órbita. Não nos conforta ou ilumina; inquieta-nos, como se estivéssemos diante de um enigma a ser decifrado. Porém, embora ambígua, ela não é um enigma; ela nos diz, claramente, o que é: Sou o que sou.
Ela foi, para mim, o mais próximo da chamada Síndrome de Stendhal, que afeta visitantes – sobretudo de países da América do Norte e da Europa, exceto da Itália – que veem as obras-primas da Renascença pela primeira vez. Diz Alberto Manguel: “Algo nessas obras de arte colossais as assombra e a experiência estética, em lugar de ser uma experiência de revelação e de conhecimento, torna-se caótica e simplesmente desnorteante, a autobiografia do pesadelo.”
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