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Uma plantação de mulheres tristes



O ritual é sempre o mesmo pela manhã. Faz o mate ouvindo o rádio, despeja a ração para as velhas labradoras e prepara-se para sair. O cavalo já foi providenciado, o ar da manhã é frio e o orvalho que parece o que restou de uma chuva de lágrimas. Enquanto sorve o líquido quente abre o Livros dos Espíritos e pede que seus guias elevem o seu pensamento. Faz todas as manhãs o mesmo caminho. As cadelas o acompanham, num ritmo trôpego, mas não menos ferozes. Gosta de ver de longe a plantação. Que assim à distância, lembra as fileiras exatas e geométricas de oliveiras repolhudas, como que bordadas na paisagem. Ou grandes couves-flores salientes, uma do lado das outras. Ele olha com satisfação sua obra e sorri todas as manhãs na frente do plantio.

É uma plantação de mulheres tristes. Plantadas na terra, os corpos nus enterrados, as cabeças para fora, respiram com dificuldade quase todas, algumas ainda abrem os olhos, outras já perderam parte dos cabelos. Há as que tem os lábios desidratados pela sede, outras cegas pela implacável luz do sol, a outras faltam-lhes uma orelha, roída por algum animal noturno. Todas irremediavelmente tristes. As almas secas. Os corpos que se alimentam da potência da dor. As cadelas as farejam, salivando, e ele as afasta com o rebenque. As suas meninas, ele zela por elas, diligente, a cada manhã.

Fez questão de deixar os cabelos negros e encaracolados da louca, a que morreu tão cedo – longos e sem fim – atapetando o campo. Um delta de renda negra. Madeixas malditas que não param de crescer.

Chama as cadelas estalando os dedos e voltam rápidos para onde os homens começam a lida e preparam o assado. Todos estão ali para o ritual diário. Comer a carne e beber o sangue.

 

Lélia Almeida é escritora

e escreve sobre as mulheres.

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