Cedo de manhã. No desjejum cotidiano, a entrada é a impolidez dos olhares fixos nos celulares para evitar o incômodo de um cumprimento, o carro estacionado sobre a calçada do pedestre, a transgressão no trânsito para encurtar caminhos já curtos. Os meios-fios cravados de cones vermelhos marcam as infrações recorrentes.
Nas pseudorrelações, a deselegância do pensamento reacionário sem argumento. Gente esquisita, que diz que o capitalismo traz liberdade e que Paulo Freire está em baixa; que agita os braços num “fora Bolsonaro” no interior de um restaurante burguês e manda os filhos para países desenvolvidos. Alguns estudaram em universidades públicas daqui, mas vão contribuir lá. À direita e à esquerda, estrondeiam portas e janelas, mas se querem progressistas ou revolucionários.
Nessa vertigem atravessada pela luz do dia, as palavras são esvaziadas em suas semânticas, de tão usadas para qualquer dessignificação. Perdem a precisão, o sentido, a força. O “tipo assim” e o gesto que simula aspas duplas denunciam a ausência do vocabulário. Dedinhos que formam corações ou hashtags falham em expressar um pensamento próprio, porque ausente. As redes sociais pedem frases “acessíveis, impactantes, incríveis, diferenciadas e sem complicação”. A vida em linguagem promocional.
Em uma cascata de identificações rasas, a verborragia presidencial, sempre descortês, escancara e oficializa essa cara amassada do cotidiano cafona, sem identidade latina, neste Estado que não é nação. O caráter miquelino da adoração do Norte e da tecnologização de informações, que não se juntam para formar a crítica ao nosso estado periférico na cultura, na educação, nos hábitos, coloniza toda uma juventude que se quer global. Descolonizar o pensamento para enraizar-se no próprio território deveria ser a palavra de ordem, mas voltamos à lacuna dialética da linguagem e do pensamento e mantemos nossos interesses no que vem dos mercados centrais, no mais genuíno complexo de vira-lata.
À noite, uma conhecida virtual troca comigo ideias sobre o escrever, não como um exercício intelectual, mas como um dever moral de cravar os dentes e as unhas em partes da realidade que não podemos deixar passar. Das invasões imperialistas ao barulho dos vizinhos, a linguagem corrente denuncia as contradições, a posição marginal e o pensamento secundário do ser brasileiro. Coisas que este texto pretende registrar.
Deste texto vi o nascimento. Crítica afiada e inteligente, como sempre.