É bem provável que toda pessoa negra, ao contar uma situação de racismo, tenha ouvido de uma pessoa branca: “Ah, será que é racismo mesmo? Isso não é coisa da sua cabeça?” Eu já ouvi isso em várias situações, mas duas, particularmente, me marcaram: uma, de uma amiga, que, branca, jamais conseguiu se colocar em meu lugar e identificar como e de onde eu sentia parte das minhas dores. Ao mencionar a questão do racismo em nossas conversas, ela sempre reforçava: “Isso não é coisa da sua cabeça?” Me deixava confusa e me sentindo muito culpada pelo que eu mesma sofria.
Outra, quando menciono que, nos lugares de classe média onde transito – como local de trabalho, restaurantes, hotéis ou aeroportos –, sou muito olhada. Aí, me dizem: “Isso acontece porque você é bonita, chama atenção. É assim mesmo!” A questão é que isso também ocorre quando estou com meu namorado, que também é negro, ou com alguma amiga negra. Agradeço o elogio de que somos bonitos, obrigada, mas daí essa “admiração” se converter em viradas de cabeça indiscretas acompanhadas de olhares perturbadores faz com que desejemos não sermos tão “bonitos” assim. Quem gosta de ser olhado o tempo todo? Incomoda muito mais que elogia.
Por um bom tempo, acreditei que era isso mesmo. Até que a vida me trouxe algumas experiências que demonstraram que eu não estava errada. Pessoas brancas com algum parente negro, como marido, mulher, filhos adotados ou não, passaram a me relatar situações de racismo e de preconceito vivenciadas e bem parecidas com aquelas que eu costumava contar. Perplexas, elas me diziam: “A gente só consegue compreender quando vive a realidade de uma pessoa negra!”
Isso me leva ao caso do príncipe Harry, o 5o. na linha de sucessão ao trono da realeza britânica. Desde novembro de 2016, ele assumiu o namoro com a atriz norte-americana Meghan Markle. Filha de pai branco e mãe negra, mesmo tendo a pele clara, os racistas não a perdoaram. Passaram a agredi-la virtualmente com todo tipo de insultos e de preconceitos raciais. Jornais inescrupulosos fizeram uma varredura em sua vida íntima Um deles, inclusive, ofereceu dinheiro a um ex-namorado da atriz para contar algo de desabonador sobre ela. Alguém pode dizer: “Mas a Kate Mindleton, mulher do príncipe William, e até a princesa Diana passaram por isso. Os paparazzi não perdoam. É normal!” Mas qual das duas foi lembrada por suas origens raciais ou sofreu racismo nas redes sociais por ser branca? Não, não é normal.
Negros da classe média são olhados por onde passam porque, para o senso comum, ali não é o seu lugar. A namorada de Harry, rica, atriz e muito bela, sendo negra, também não escapou desses olhares. Ela é alguém fora do ninho simplesmente por ter ousado pisar em um espaço onde não deveria. Sendo filha de mãe negra, como ousa se relacionar com um nobre? As “olhadas” que ela sofre vêm em forma de matérias maldosas lembrando sempre que ela é a “namorada mulata de Harry”.
Diante de tanta pressão com relação à etnia da namorada, o príncipe Harry foi obrigado a emitir uma nota oficial, em nome do Palácio de Buckinghan, pedindo respeito a Meghan e à privacidade de sua vida pessoal. Ao relacionar-se com uma mulher de origem negra, Harry se vê frente a frente com a força do racismo e da intolerância. Por causa de seu prestígio real, o impacto toma proporções ainda maiores e torna evidente o que era disfarçado: uma pessoa negra em espaços de riqueza, de elite e de poder não é bem-vinda. Incomoda e chama a atenção, não por que é “bonita”, mas porque é vista e olhada como “a exótica”, a estranha no ninho, a que ousou pisar em lugares que nunca foram reservados a ela.
O caso do príncipe Harry traz um lado positivo, pois obriga até mesmo a imprensa a reconhecer que a negritude tem peso, sim. Bonita, feia, gorda, magra, pele clara ou escura, cabelo natural ou alisado, é negra e está no meio da riqueza? Vai ser olhada e questionada sobre como ousou chegar aqui. Quando o príncipe se casar com Meghan, seremos bombardeados, todos os dias, com fotos, fofocas, comentários e observações maldosas ou não, mas sempre mencionando a negritude da futura duquesa, ou seja lá que outro título nobre ela venha a receber.
Relacionamentos como o de Harry trazem uma boa lição àqueles que dizem e afirmam, do alto de sua branquitude, que “racismo é coisa de nossa cabeça”. Ao vivenciar e reconhecer a violência sofrida pela namorada, o príncipe sentiu bem de perto o peso daquilo que muitos dizem ser “coisa da cabeça” do outro. Basta conviver com um negro ou, no mínimo, ter empatia com a nossa história, para constatar que, infelizmente, o racismo é uma realidade e acontece bem do lado de fora de nossa cabeça. (Foto: Escravos Brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Editora Ex Libris, 1988)
Noemia Colonna é Mestre em Comunicação,
mãe de adolescente, professora, jornalista, mídia social,
leitora voraz, amante da música e outros corpus,
e uma pá de coisas que lhe caiam nas mãos.
De vez em quando dá uma pausa em tudo,
bota o pé na estrada, e se joga no mundo
para "ver e sentir as voltas que o mundo dá"
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