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No tempo da performance, no espaço da criação

Atualizado: 26 de ago. de 2019

Entre tantas atrações do 20º Festival Cena Contemporânea, tive oportunidade de assistir às duas performances de Renata Caldas, no dia 21 de agosto, no Espaço Cultural Renato Russo, na 508 Sul, para satisfazer uma expectativa construída pelas fotos e notícias sobre as primeiras apresentações, realizadas em Pernambuco. Lá, a performer, atriz de cinema e teatro, jornalista cultural e autora do recém-lançado O Romance-em-cena de Aderbal Freire-Filho (Editora NotaTerapia, 2019), faz um mestrado em Artes Visuais.


Descalça, com vestido preto sobre malha preta comprida a cobrir os braços e as pernas, a artista entra em cena com uma fita de Möbius, que, sabemos pelo programa, começará a desenrolar para apresentar a performance que denominou Meu Abismo.

A fita – estimo – tem de 4 a 8m de comprimento e cerca de 15cm de largura. Sua cor e sua textura lembram o material bege de uma mangueira de incêndio, mas sua espessura é mais fina, como a de persianas verticais que já vi cobrindo portas de correr. A espessura não é fina a ponto de amarrotar, mas permite enrolar e desenrolar.

Durante 20 ou 30 minutos, a interação entre a artista e o objeto será o centro do universo para o público cativo de Renata. Não há trilha sonora e nem há iluminação especial. São poucos elementos, mas, com muito menos, Deus fez a luz e muito mais, legando-nos a ventura de também criar imagens e semelhanças.

A artista não desenrola de vez ou joga a fita no chão, mas a desdobra e depõe devagar. O jogo é “pavimentar” o caminho em que pisará, materializando o “caminante, no hay camino, se hace el camino al caminar”, de António Machado.


Diferentemente de um carretel de linha, que tem uma ponta no começo e outra no fim, a fita da artista não tem extremidades. É “fechada”, sem entrada, como um círculo desenhado num papel, uma pulseira, uma roda ou um cinto depois de atado. A pulseira, o cinto e o pneu têm uma parte externa e uma parte interna, um lado direito e um lado avesso, um totalmente mostrado e outro totalmente oculto, como dois territórios que não se comunicam.

Acidentalmente, um cinto pode ser colocado de modo torcido. Além de poder incomodar, a torção aparece como o ponto em que o lado oculto começa a ser exibido, em que o lado avesso toma o lugar do direito e em que o que estava atrás aparece à frente. O ponto móvel da torção opera um movimento de permanentes inversões.

A conversão de uma qualidade no seu oposto, operada na dobra ou na torção da fita de Möbius, é familiar. Aparece na reflexão de Lao-zi sobre o “curso” – o “Tao”; na linguagem da profecia (no sertão vai virar mar; no mar que virará sertão); na da religião (a vida depois da morte; a primazia do pobre sobre o rico; a primazia do último sobre o primeiro; o reinado invertido em que pobres, humilhados e ofendidos serão redimidos); e na tradição da dialética, na qual os tipos (e os famosos tipos ideais) e as distinções em geral são sempre momentos de um processo com muitos tempos diferentes de amadurecimento/desenvolvimento.

Contemporaneamente, com grande produtividade – ou capacidade construtiva –, certa ideia de circularidade incorporou-se na ideia de retroação (ou realimentação, “feedback”), da cibernética, desde os anos 1940; na ideia de recursividade, do modelo gerativo de Chomsky, nos anos 1950; e na ideia do fechamento (closure), com a qual Gotthard Günther tanto nutriu a ideia de autopoiese, de Humberto Maturana, nos anos 1960 e 1970, e a virada na teoria sistêmica de Niklas Luhmann, que deu imenso poder dialético e criativo à obra do sociólogo que tive a oportunidade de ouvir na Universidade de Brasília em 1994 ou 1995.

Pois bem, estava imerso nestes ou noutros pensamentos sobre a qualidade mágica dos círculos que deixaram de ser só viciosos e passaram a ser ditos também virtuosos, quando a artista rompeu a fita, fazendo o que era um círculo especial – uma fita de Möbius – virar reta, mas mantendo a regra ou jogo de pisar a fita, agora retificada, a fazer a vez de “caminho”. Em seguida, a artista faz novas segmentações e se agacha para criar quatro ou cinco caminhos que ordena de modo a fazê-los paralelos entre si. Há angústia no seu olhar? Não sei dizer. Talvez estivesse eu mesmo com os olhos postos no meu abismo interior. Sei que ela fita o público e estende um braço como quem pede ajuda. Uma pessoa a puxa, ela a abraça e pisa o chão, pela primeira vez, fora dos “trilhos”. Fim. Ou começo? Do quê?

Fim e começo são quandos. É muito trivial perguntar sobre o significado de uma obra de arte, o que nunca é vão. Num texto seminal (e ovular) de 1963, que Renata bem conhece, Antonio Candido sugere que o autor (por extensão, o artista) só conhece sua obra pela mediação do público. Meu Abismo pode ter muitos quês e porquês, mas eles certamente têm um quando de nascimento, que é o do tempo da performance.

Na segunda apresentação, É Permitido Chorar, um pequeno cenário é valorizado pela iluminação. Os objetos são um banco de madeira e dois porta-lenços públicos fixados na parede e um recipiente de vidro para o material descartado, numa extremidade do assento. Na parede, em uma placa, o ícone branco de um/a “chorador/a”, sobre fundo azul, divide espaço com a mensagem “É permitido chorar neste local”, impressa em caixa alta, sem serifa, com ênfase na locução adverbial.


A artista entra em cena, senta e chora. Por quê? Por que, quem vê longe, chora cedo? Por que a festa acabou? Por que a luz apagou? Por que o povo sumiu? Por que a noite esfriou? Por que o dia não veio? Por que o riso não veio? Por que não veio a utopia? Por que tudo acabou? Por que tudo fugiu? Por que tudo mofou? Por que neste país é proibido sonhar, para lembrar outro poema de Drummond?

As perguntas vêm por conta da natureza de um choro mais público que privado e são afinadas com uma obra que nasceu, segundo o programa, “da percepção de um choro coletivo sufocado, iminente”, que não é preciso dizer de quando vem. É um choro coletivo do qual se sabe quem, o quê, onde, quando, como e por quê.

Uma menina negra, de talvez dez anos, senta-se ao lado da artista e a consola, afaga, abraça e segura sua mão. Espontânea, a participação da menina tem tanto propósito que “chega parecia” combinada – mas há gente que, desde pequena, traz na consciência uma tabuleta de não ser indiferente a uma pessoa sofrendo. Tenho a grata memória de uma oficina de Teatro do Oprimido, com Boal, no Dulcina, em que a própria Renata Caldas fazia as vezes da pessoa que subia ao palco para congelar uma cena de opressão, substituir a pessoa oprimida e mostrar o que deveria ser feito em seu lugar. Renata não mudou. Até contagiou.



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