top of page

Filme Polícia Federal é um Espanto



O filme Polícia Federal, a lei é para todos, dirigido por Marcelo Antunez, produzido por Tomislav Blazic e inspirado no livro homônimo do jornalista de Veja Carlos Graieb e Ana Maria Santos é um espanto em todos os sentidos. O título já é ridículo porque num país de encarceramento em massa seletivo e escancarado. Mas há mais: financiamento secreto, lançamento e recorte suspeitos, apoio de um órgão de justiça pública, representação desonesta de pessoas e de fatos, cinismo de produtores e de atores e retórica violenta de grande parte de seu público. Todos os ingredientes de um filme manipulador e perigoso.

Os investidores, anônimos até hoje, injetaram 15 milhões de reais, o que Blazic chama de “dinheiro bom”, na origem e na quantidade. Ocultos, eles privatizam a relação entre pessoas e espaço público mediando uma questão controvertida, judicialmente inconclusa e de interesse da maioria. A ideia de uso público da razão dá lugar à expressão pública de interesses escusos da classe dominante. Quando a média de filmes nacionais é de 7 milhões, a época é de cortes na Cultura e patrocinadores culturais disputam o tamanho de suas logos nas telas de cinema, é tudo muito suspeito. Essa omissão é perigosa. Bourdieu já disse que, quanto mais um financiador cultural é autônomo, menos ele se inclina a influências externas; quanto mais heterônomo, mais inclinado a colaborar. Então, faz diferença sabermos quem são. Não sabemos, e o filme se diz imparcial.

Lançado em um 7 de Setembro a não ser comemorado porque o país ratificava seu destino de senzala – a casa grande continua nos estrangeiros –, houve tapete vermelho, seção de autógrafos e entrevista do juiz sobre um caso que ainda está julgando. Houve também forte esquema de segurança. Veja disse que Moro “desbancou Tom Cruise”; Exame, que a PF merecia mais. A mídia e a cerimônia ajudaram a eliminar um princípio jurídico básico: a presunção de inocência, o que o filme terminaria fazendo sozinho, de qualquer jeito. A ideia clara é transformar a corrupção em diversão ficcional para deixar de ser levada a sério, mas mantendo a credibilidade dos eleitos heróis.

Nesse contexto impudente, a ficção-delírio começa com a prisão do doleiro Yousseff, passa pelo vazamento seletivo dos áudios de Lula e Dilma e termina com o sequestro de Lula, na visão do diretor, “o momento mais importante da Lava Jato até hoje, pro bem ou pro mal”. Há, portanto, um recorte muito claro, que diz aonde o filme quer chegar. A invasão à privacidade e ao direito de defesa de pessoas não condenadas rende altos índices de audiência, afinal, nada é mais divertido que surpreender um ex-presidente de cuecas, já disse Vargas Llosa. Mas o filme se diz imparcial.

A colaboração inédita e exclusiva da Polícia Federal é a novidade inexplicada. Um acordo de cooperação entre Blazic e o diretor-geral desse órgão de justiça e de segurança pública viabilizou a aventurosa relação entre cultura e política. A PF cedeu equipamentos, pessoal, avião, viaturas e a própria sede para as filmagens, assim como acesso a documentos e a depoimentos gravados em uma investigação ainda em curso. E ela já cobrou toda essa colaboração: divulgar-se a si mesma e a uma representação de mundo sob sua própria perspectiva ao grande público. Em tempos de ditadura, a cultura sempre depende mais da política. Vejam a propagação da cultura nazista. Essa relação promíscua transforma a cultura em propaganda. Daí a falta de originalidade, de espontaneidade, de espírito crítico e de vontade de renovação e de experimentação do filme. Como se não bastasse, há, portanto, a perspectiva dos investigados, polarizados, que é desconsiderada. Mas o filme se diz imparcial.

A representação dos personagens é inacreditável. Os investigadores-heróis-protagonistas da trama são inspirados nos delegados da PF, nos procuradores de Curitiba e em Moro, claro. Esses delegados e esses procuradores, reais, têm nomes fictícios, para “terem suas imagens preservadas”, diz Antunes. Moro é “O juiz”. Vejam esse belo artigo definido, marca exclusiva de quem pode. Os investigados, criminosos e corruptos, ao contrário, recebem nomes de investigados, também reais: Yousseff é Yousseff, Lula é Lula, Marisa é Marisa e Paulo Roberto da Costa, o ex-diretor da Petrobras, é Paulo Roberto da Costa, o ex-diretor da Petrobras. Estas pessoas, reais, não precisam ter suas imagens preservadas, mesmo aquelas que ainda não foram condenadas. Mas o filme se diz imparcial.

Poderíamos fazer uma analogia com o filme Lula, o filho do Brasil, de Fábio Barreto e Marcelo Santiago: 1) 17 milhões de reais; 2) lançamento às vésperas da campanha de Dilma em 2010; 3) mise-em-scène no tolo formato mainstrean; 4) heroicização de Lula: bom filho, dedicado à família, marido fiel e dedicado e sobrevivente de uma infância pobre e violenta. O foco, como em muitas outras péssimas encenações de biografias, está muito mais nos dramas pessoais cotidianos de Lula do que na importante atuação que teve como metalúrgico sindicalista, considerado hoje o maior líder popular do Brasil. Peca, e muito, aliás, pela similitude com as novelas romanceadas, adocicadas e infantilizadas das 18h. Tão ruim quanto foi A Vida de Miles Davis, de Don Cheadle. Difícil passar dos primeiros 5 minutos.

Porém, diferentemente do A Lei é para Todos, os patrocinadores são públicos: Oi, Senai, Wolksvagem, Hyundai, Odebrecht, Camargo Corrêa e OAS. Se não representam reputações ilibadas, estão identificados. Podemos estabelecer relações entre texto e contexto. Mais: Lula, o filho do Brasil, não polariza com as forças da direita nem com um antagonista claramente identificado, exceto o próprio sistema capitalista de exploração da classe trabalhadora e o sistema repressivo do Estado. Como qualquer narrativa, conta fatos de uma perspectiva, mas não polariza o bem e o mal; não opõe um mocinho nacional a um bandido nacional; não é maniqueísta. Lula é o homem comum, lutador da justiça social.

Como diz o crítico Pablo Villaça, a propaganda política pela comunicação de massa não é problema, em nenhum dos lados da política. Lênin dizia que, para a revolução soviética, a arte mais importante era o cinema, utilizada até hoje. O que incomoda mesmo no filme da PF é o cinismo de produtores e de atores, cuja negação do partidarismo beira à irresponsabilidade. Cinicamente tornam-se, nas palavras de Bourdieu, diretores de consciência e porta-vozes de uma moral pequeno-burguesa dizendo o que se deve pensar da PF, da corrupção nacional, do único partido citado no filme, o PT, claro, e a qual lado aderir.

Vargas Llosa já falou do oportunismo profissional de artistas transformados maîtres à penser. Com poder de alcance midiático, é problemático que tomem partido de modo a destruir quem quer que seja, especialmente, pessoas em processo inconcluso. A traição desses artistas não é a princípios democráticos abstratos, mas a bilhões de pessoas de carne e osso que, nas ditaduras, resistem e lutam para alcançar a liberdade e a dignidade. Muitos artistas se tornaram baratos demais, mas ainda bem pagos. Marilena Chauí já percebeu a potencialização da venda de qualquer ideia anunciada por atores de novela, em uma duplicação ficcional: eles não apenas atuam no filme; eles vendem a própria PF como a solução para a corrupção nacional. São as personalidades autorizadas: suas opiniões se convertem rapidamente em propaganda.

Por fim, uma navegação rápida pelas postagens do público que gostou e vai gostar do filme mostra telespectadores assumindo o papel de protagonistas daquilo que o formador de opinião, o filme, descreve ou narra como verdade e que não está comprovado pelos órgãos públicos de justiça. Aderem a uma ideia e a expressam por emoção, por preferências, por gostos, por aversões, por predileções, com a mesma violência cotidiana com que tentam preencher o vazio da falta de argumento. Em lugar da opinião pública, tem-se a opinião publicada. O achismo nas redes. É por isso que esse atentado à democracia é apenas parcialmente simbólico: os produtores do filme contavam com essa cumplicidade tácita e, em certa medida, inconsciente de seu público mediano, mas atentaram contra a democracia conscientemente. Sabem que são vistos como o lugar do saber, e a PF, o lugar do poder. Sabem que seu público, mediano, é irremediavelmente incapaz de qualquer distinção. O tipo hollywood não exige nenhuma formação intelectual para sua fruição porque a indústria cultural tem uma consideração enorme, proporcional ao demérito intelectual de seus consumidores.

Essa deslealdade semiótica com padrões hollywoodianos expõe, à luz solar, que nem o poder, nem seu uso desapareceram e sequer são difíceis de localizar. Não é preciso ser um analista do discurso ou um semioticista, nem um crítico de cinema. Basta certa impaciência com a mediocridade. Essa simbiose entre mainstream e público formatado comprova: o que o filme repete é aquilo em que o público precisa continuar acreditando: na justiça, afinal, estamos em um golpe. Essa é a narrativa trivial de que fala Flávio Kothe: a encenação da eterna vitória do bem sobre o mal, definidos aprioristicamente, tout court, em uma reiteração obsessiva, estereotipada, superficial e doentia; um eterno retorno do mesmo, doutrinando enquanto parece divertir, legitimando e arautizando preconceitos, despolitização, violência e puro desconhecimento político e histórico. Seu objetivo é simples: para cooptar, promete a salvação da justiça e institucionaliza a meia-verdade da PF, falindo o raciocínio e a crítica. Vítima e vilão, seu público entra no jogo da manipulação de crenças partilhadas, de construções simbólicas.

Com diz Llosa, o filme deixa intacta a inteligência, ou a falta dela, de seu público mediano. A Lei é para Todos presenteia esse público com óculos míopes, que muitos passarão a usar. É a espetacularização da imundície e das más intenções alheias. O cinismo do filme é um espanto.

 

Denise Macedo é polemista por vocação,

professora, Doutoranda e Mestre em Linguística,

com pesquisas na área de

Análise de Discurso Crítica

7 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page