Bom. Vamos lá. Por que assistir e comentar a recente produção da Warner Bros? Porque o cofre do Mickey Mouse acumulou mais US$1 bilhão com ele? Não. Todo mundo sabe que o grande objetivo desses estúdios é obter lucro mesmo. Porque foi premiado com o Leão de Ouro? Não. Há muito já se questionam sucessos de crítica e de público. Assisti o filme porque pessoas do naipe de Jessé Souza, Michael Moore e até Slavoj Žižek falaram sobre ele.
O autor de A Elite do Atraso diz que chegou a acordar no meio da noite em que assistiu o Coringa assombrado por fantasmas. Chega a dizer que o filme rompe com estereótipos porque quebra o paradigma do herói que é sempre o homem de bem, com vida feliz em uma família estruturada. Que heróis são esses? Heróis de filmes e de HQ são solitários, com muitas tensões emocionais.
Afirma que o público se identifica com o palhaço assassino porque a narrativa mostra os percalços porque a personagem passa para justificar os crimes que comete. Jessé Souza retoma a expressão darcyniana “máquinas de moer gente” para descrever a sociedade que adoece as pessoas a ponto de transformá-las em criminosos de todo tipo. Filmes como Cidade de Deus deixam claro, de modo ainda mais dramático, as pressões sociais que levam um indivíduo normal – coisa que Joker não é, pois já esteve internado – a cometerem crimes.
O autor de A Radiografia do Golpe considera ainda que a generalização que faz – milhões de pobres e oprimidos no mundo – se identifica com o modo violento como o comediante falido Arthur Fleck reage a quem o humilha (os quais não “mata à toa”, criando "um vínculo de simpatia com o público”), atribuindo um sentido de violência que muitos oprimidos simplesmente não têm e atribuindo, ao filme, a genialidade de criar uma nova moral. Qual? A identificação com a violência no Brasil 2016-2019 revelou-se muito fortemente na classe média, na elite reacionária que reassumiu o poder e em seu núcleo duro, que a apoia apesar de todas as evidências de crime, em um projeto de governo genocida.
Žižek parece acertar mais ao identificar um Coringa final “como um novo líder tribal, mas desprovido de qualquer programa político, uma pura explosão de negatividade”, com uma performance não política, como o próprio personagem insiste em dizer. O filósofo esloveno parece pontar para a sempre muito conciliadora esquerda brasileira sem projeto revolucionário. Como já perguntaram: Lula está livre. E agora? Qual é o projeto progressista revolucionário no Brasil?
Não se pode desconsiderar que, no final, o palhaço assassino volta ao lugar de onde, para o mesmo sistema que o vence de novo e de novo, nunca deveria ter saído: o hospício, ou a prisão. A alegada revolução social dos palhaços, aqui no sentido amplo, não abalou a elite, pois não houve revolução. O líder sem projeto está detido novamente. Não há revolução no tecido social fragmentado pela elite. Não se pode desconsiderar que a Warner Bros, ao transformar a possibilidade de revide dos despossuídos em entretenimento bem ruim de Hollywood, apaga essa ideia nos expectadores, que voltam para suas casas e suas vidas de palhaços porque, sim, a revolução, o revide, é uma construção histórica e cultural de séculos, e não um efeito imediato de um filme pouco original, como ingenuamente sugeriu até o famoso cineasta Michael Moore.
Coringa é um filme cheio de clichês do padrão Disney e de novelas mexicanas e brasileiras: um freak vitimizado como Edward Mãos de Tesoura; um cidadão-comum-palhaço que reage em Um Dia de Fúria; um contexto social patológico do estilo do The Wall, mas não tão bem-contado. Como não poderia deixar de ser, perseguições policiais; capotagens no centro da cidade; bad boys covardes que atacam minorias: míopes, fracos, mulheres, gordos, negros; o filho que mata a mãe opressora. Não chega perto do personagem Gwynplaine, de O Homem que Ri, de Conrad Veidt (1927), adaptado do romance de Victor Hugo e uma das inspirações para a criação do arqui-inimigo de Batman. Coringa, o filme, mantém a tensão, mas nada nele inova, choca, tampouco revoluciona.
Análise inteligente e crítica. Acrescentaria alguns elementos, mas acho que vou fazer isto em um artigo, que, talvez, venha a escrever. Parabéns pelo texto.