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ALGAR(A)VIAS _ parte α/Ω


Retrato de Gustavo Lisboa - O Sketchbook negro do Scheufler

Gaivotas histerizam a paisagem azulejada de uma praia anódina, turística, conchas partidas. Pegadas cartaginesas, celtas, gregas, romanas, bizantinas, bárbaras, árabes, cristãs se misturam e desaparecem na inconstante e obsessiva dança das ondas. Atrás de mim, a silhueta dos hotéis, do cassino, dos condomínios. Defronte meus olhos semicerrados ao sol do meio-dia, a boca do Atlântico aberta e mais além posso imaginar um Marrocos qualquer. Vilamoura outoniza os ingleses de meia-idade com sua bagagem de golfe e ressaca. O verão já se foi, mais um de uma série infinita e com ele os gritos das crianças, a gordura das mães, a multidão das famílias, a indiferença do céu rutilantemente azul, o calor e a secura. Daqui a pouco as tímidas chuvas da estação, abastecendo os sapais de anfíbios e melodias.

Penso em nada e em tudo. Penso sempre no futuro Richter 9.0 que arrasará Portugal, especialmente o Algarve. Todos esses hotéis, condomínios, o cassino, a orgulhosa e grande marina com suas centenas de lanchas e iates e restaurantes e pubs e bares, tudo isso será reduzido ao concreto original, disforme como um quadro de Wifredo Lam. Entretanto as já milenares ruínas romanas do Cerro da Vila, patrimônio nacional português, resistirão em seu estado original. Grande consolo! Continuo pensando, não posso deixar de pensar. Como desejaria não pensar, ser uma concha quebrada, vazia, resto de um sequestro de carbono, que crianças entediadas recolhem e jogam de volta ao mar. Mas não saio de minha contraditória condição de primata pensante, fruto de uma evolução cega, absurda, desprovida de qualquer imanência, que um dia voltará ao nada advindo.

Retorno para a promenade que margeia a praia, sigo em direção ao porto de pesca de Quarteira. As gaivotas mazurcam o céu. Já passou a época do acasalamento, os rebentos surgiram, aprenderam a voar e agora perpetuam seu mister de comer o que encontram. Melhor se peixes, mas estes aos poucos desaparecem dos oceanos. Nosso destino de predador em ação. Ainda bem que desaparecemos um dia. Enorme consolo! Sigo ziguezagueando pelo passeio, entre alecrins, manjericões, bancos, lixeiras. Olho o perfil das casas e dos prédios de temporada da Quinta do Romão. Um bambuzal recém-cortado volta a se espreguiçar. Acendo meu câncer cultivado com esmero. O Atlântico e suas naus desaparecidas. Daqui do Algarve e de Portugal saíram para conquistar o nada, como soem fazer impérios efêmeros. Agora, saem para abastecer de peixes, mariscos e frutos do mar os restaurantes de verão e as barrigas turísticas. Sinto uma vaga fome de bacalhau e absoluto.

Meus pés conduzem-me ao calçadão de Quarteira. A balbúrdia estival agora ecoa, lojas e cafés atendem no momento a freguesia normal do outono. Passo por uma relíquia da arquitetura pobremente digna algarvia pré-turismo. Uma casinha de teto baixo, fechada em fantasmas, representante do estilo chão que Kubler tanto adorava e ajudou a prestigiar. Sento-me num banco do calçadão próximo a um café semi-deserto. Lanço um olhar de arquiteto frustrado para o espectro da casa, de um tempo de pescadores, mulheres de preto, odor de mar. Daria um bom espaço para um café acolhedor, com livros e jazz. Mas o destino dessas paredes é um inventário infinito nas gavetas das varas de sucessão. Continuo meu périplo por Quarteira, subindo o calçadão até a velha igreja, com sua escada incongruente e seu sino indiscreto. À volta, no pequeno largo, outros sobreviventes da Velha Quarteira, a maioria fechados e aguardando a benevolência do capital. Um gato de rua passa bamboleando, olha para mim, comiserado, e some detrás de um muro branco.

Resolvo voltar para casa, esquecido do que vim fazer. Tanto importa. Um dia, os mísseis cairão sobre a Europa, sobre o mundo, o meteoro ansiado abrirá um buraco na esperança da humanidade, a agonia lenta da natura terá seu fim e nós, zumbis bípedes, seremos nem uma nota de rodapé do Guia dos Mochileiros da Galáxia. Tanto importa.

Contudo, dentro de um escaninho empoeirado de minha mente absconsa, uma esperança cortaziana abana seus bracinhos, mendigando uma atenção qualquer

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