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A Memória como Resistência: O Hisn de Paderne


Castelo Paderne
Castelo Paderne, arte digital. Sous Zéro, 2018

Meu irmão, a aurora vem

Feita de luz e esplendor

Ofertando assim à noite o véu.

Sorve já a matutina

Bebida que a alva traz

E, como se presa fosse,

Toma a alegria do dia

Pois da tarde nada sabes...

Meu irmão, toca a erguer!

Olha a festa da manhã

No jardim gelando o vinho.

Não durmas, é hora de levantar.

E, como se presa fosse,

Toma a alegria do dia

Já que sob o pó da terra

Longo te será o sono.

Abu Muhammad 'Abd al-Majid ibn 'Abd Allah ibn Abdun al-Yaburi

? -1135



Chego ao Castelo de Paderne. Suas grossas paredes de taipa militar, com matizes de ocre e amarelo ao sol da tarde de inverno, estão lá a lembrar de seu propósito defensivamente intimidador: resistiremos! Sim, houve luta – e não foram poucas – ao redor e dentro desse Hisn, desse pequeno castelo-povoado islâmico, que hoje, de acordo com a tradição, faz parte do campo dos castelos da bandeira portuguesa.


Toda ruína é um testemunho da melancolia própria da história humana. É inevitável a sensação de futilidade dos propósitos humanos que esses espaços antigos provocam. Castelos, sobremaneira. Sejam feitos de pedra ou de taipa militar, suas ruínas viram clichês de memórias de feitos heroicos, tambores retumbantes, pálios desfraldados, gritos e imprecações, tinir de espadas e todos os demais componentes associados aos cantares de gesta e banais películas “históricas” de Hollywood.


Porque a própria História é-nos dada como palimpsesto, camadas de escrituras historiográficas, cada época com a sua singular maneira de ver o mundo e tentar defini-lo com os instrumentos e mentalidades do momento. E, igualmente, para a afirmação de conceitos e preconceitos que referendem identidades de povos e nações. Mais do que a historiografia, a paisagem mesmo na qual se situa esse Hisn é um palimpsesto em si: a atual Paderne, Al-Bantar para os Almôadas, havia sido Paterna, em tempos romanos. E mais recuado no tempo, outros nomes, pelos celtas e pelos tartessos. Porque esse promontório rochoso é um lugar fortificado há milênios.


A chamada Reconquista Cristã da península ibérica é uma dessas ocasiões de escrever e reescrever a história: uma luta constante de séculos para retomar um terreno que era cristão e fora conspurcado pelos invasores muçulmanos, seguidores de uma falsa fé. Esse discurso foi formulado ad nauseam pelos cronistas do medievo tardio e do renascimento. Os cantares de gesta dos autores anônimos iniciaram o processo. El Cantar de Mio Cid é o exemplo mais evidente. Mais tarde, as crônicas reais dos feitos magnânimos de soberanos dos reinos peninsulares consolidam o discurso da guerra santa contra os inimigos da Cruz. Hoje, o discurso é outro, pois a época exige uma visão mais secular: a “Reconquista” é apenas mais um processo geopolítico de embate entre o mundo cristão e o mundo islâmico, uma luta de hegemonia territorial, social, econômica e social, como todas as lutas humanas, com componentes ideológicos fortes, de cariz religiosa.


Contudo, sabemos que a história peninsular é uma constante de invasões de povos distintos que no decorrer dos séculos foram se ajustando, se moldando, se misturando, se acomodando a cada leva mais forte de conquistadores: tartessos, celtas, cartagineses, romanos, vândalos, suevos, visigodos, árabes, berberes, todos lutaram, pacificaram, moldaram, consolidaram, resistiram, em momentos diferentes ou em mesmos momentos, no fluxo constante da história da Europa. O que são os portugueses e os espanhóis de hoje senão os retalhos de todos os povos anteriores no sangue de suas veias.


Essa busca por uma identidade sólida é inútil, em última análise. Extrair de um determinado momento histórico a justificativa para o presente é eliminar o próprio presente, sempre a construir. Não existe um estado-nação per si, inabalável, imutável, constante. O constructo da Espanha como unidade não existe sem as antigas espanhas cristãs: Astúrias, Leão, Castela, Navarra, Aragão e sem a Andaluzia islâmica. O mesmo vale para Portugal e a Galícia e o Al-Gharb. O atual fluxo de – ainda – incipientes movimentos separatistas em solo espanhol, o Catalão sendo o mais visível, talvez seja apenas mais um movimento do pendulo. Não é por acaso que na Catalunha busca-se no antigo reino de Aragão, ou mesmo no mais ainda remoto condado de Barcelona, como justificativa para uma (im)possível independência. Um ponto importante a considerar é que, em vários momentos, as alianças feitas davam-se também entre cristãos e muçulmanos, ao sabor de interesses momentâneos e imediatos. No século XI, por exemplo, régulos islâmicos de diversas taifas eram obrigados a pagar tributos aos reinos cristãos que os ameaçavam. O uso de tropas mercenárias cristãs e islâmicas em ambos os lados igualmente acontecia. A mélange era a regra, em vários aspectos: social, militar, cultural.


O sol ruma para cabo de São Vicente. Dou a volta no Castelo de Paderne. Vejo as aberturas nas muralhas pelas quais as águas dos dejetos escoavam há 850 anos, quando essa povoação fortificada servia de moradia para o comandante da guarnição – e da própria, além de agricultores, e que defendia essa região agrícola das incursões dos infiéis mais ao norte, depois da serra algarvia, depois das planuras alentejanas, de tempos em tempos assoladas por razias cristãs.


Estamos agora no século XII da era cristã, o VI da Hégira. Quem domina, ou tenta dominar, o Al-Gharb é uma dinastia de povos berberes, os Almôadas. Delimitemos um ano: 1185 no calendário cristão, 564 A.H. D. Sancho I inicia seu reinado em Portugal - reconhecido, desde 1179, por Alexandre III e sua bula Manifestis Probatum, como reino independente na península. Abu Yusuf Yaqub Al-Mansur é o califa reinante dos Almôadas, em seu primeiro ano de governo. Em terras que um dia seriam a Espanha, vários reinos peleavam entre si e contra os Almôadas: Navarra, Aragão, Castela e Leão, com seus respectivos reis: Sancho VII, El Fuerte; Afonso II, Afonso VIII e Afonso IX.


Quem visita Silves hoje, ao chegar pela entrada principal do Castelo, é recebido, no seu lado direito, pela estátua monumental de Sancho I, em guarda hierática. Espada de cruzado empunhada na mão direita, peito estufado e olhar soberano. Com a esquerda, segura um pergaminho com a inscrição em latim: Sancius Dei Gratia Portugallis, Silvis Et Algarbii Rex, 1189. D. Sancho I, o Povoador, filho combatente de Afonso I, o Fundador.


Em 1185, Silves, ou Xilbe para os muçulmanos, era a joia do sudoeste do Al-Gharb. Embora os Almôadas a tenham conquistado em 1150, dando um fim ao volátil segundo período de taifa na cidade, esta ainda mantinha muito do seu auge como centro cultural e político do sudoeste peninsular. Decerto o famoso Palácio das Varandas não existia mais em sua plenitude, quando Xilbe era considerada a Bagdad do Al-Andaluz, mas a alcáçova estava devidamente ajustada para a residência do governador almôade. Decerto ele estava no ponto mais alto da cidade. Decerto avistar-se-ia o perímetro das muralhas. Decerto o Rio Arade estava repleto de barcos que iam e vinham, comerciando produtos de todo o Dar-Al-Islam. Incerto era se tudo isso ainda iria a continuar.


Pois o avanço dos infiéis portugueses parecia irreversível. Abu Yaqub Ysuf, o segundo califa almôade havia perecido em batalha no cerco de Shantaryin, a antiga Scallabis romana, Santarém para os portugueses. A linha do Tejo parecia perdida para sempre aos islâmicos e o Alentejo estava assolado por razias intermináveis de cristãos contra as suas vilas e povoados islâmicos. Beja não havia sido saqueada em 1172 por Geraldo Sem Pavor, aquele cão bandoleiro? Se havia algum consolo é que a cabeça desse mercenário havia sido devidamente destacada de seu corpo em terras do Al-Mugrib, pouco tempo depois.

Abu Yusuf Yaqub Al-Mansur, o novo califa almôada resolve dar um fim a esse descalabro. Após resolver os problemas internos de seu império, dando um fim ao último espasmo de resistência da dinastia predecessora, a dos Almorávidas, volta-se para o Al-Andaluz. Nos anos seguintes ao de 1185, o jogo de perde-ganha entre cristãos e muçulmanos no Al-Gharb é constante: a bela Silves cai após um cerco sangrento em 1189, junto com os castelos de Alvor e Paderne. O saque de Silves é terrível. Em 1191, Al-Mansur consegue retomar os territórios perdidos, mas falha em conquistar Tomar e assim reestabelecer o controle do vale do Tejo. (Sua maior vitória aconteceria em julho de 1195, no alto Guadiana, contra forças de Castela). Entretanto, parece ser o suficiente para que o Al-Gharb pudesse ter mais algumas poucas décadas de relativa (in)segurança.


Confuso nos pensamentos sobre a intrincada geopolítica da península ibérica do século XII, chego ao pé da torre albarrã, uma característica da arquitetura militar almôada. Essa única torre salienta-se em direção nordeste, atalaia pronta para perceber quaisquer movimentações inimigas nas colinas do barrocal algarvio, para os lados de Salir (onde outro Hisn se encontra, agora mais arruinado). A torre tem agora uma altura máxima de 9,3 metros; talvez em seu tempo teria mais. Está agora a desfazer-se lentamente pela chuva, pelo vento, pelo tempo. Percebem-se buracos nos seus quatro lados: vestígios das agulhas na taipa da construção. Cada lado possui 5,4 metros. Havia ameias na torre, hoje estão arruinadas. O passadiço que liga a torre ao adarve do castelo tem cerca de três metros de comprimento por dois e meio de largura. Um arco simples, austero, de abóboda de canhão o sustenta. Antigamente, havia uma abertura no meio do arco para auxiliar na defesa contra o invasor. (Fico embaixo do arco e olho para cima, imaginando uma chuva de água fervente ou de pedras sobre algum infiel imprudente. Lagartos verdes esgueiram-se ao sol declinante).