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Eleições, ilações e Vozes Libertárias

Atualizado: 13 de out. de 2018



A Copa do Mundo levou meus palpites furados nos bolões e me fez voltar a atenção às eleições. Fundado na leitura de “Castello Branco: o presidente reformador”, de John Foster Dulles, desenvolvi a crença de que as eleições de 2018 podem ser como as de 1965 e nunca acontecer. No discurso, 1964 era necessário para garantir 1965, mas a lógica do Golpe deixou isso de lado.


Não acho pouco crível que a história se repita, caso uma candidatura de direita não emplaque. O que embaçaria a ordem? Uma guerra contra a Venezuela, talvez multilateral? Um cadáver (mais um, após Teori e Marielle), com sacrifício de um Moro (que já fez o serviço principal da Suja Jato), de um Bolsonaro (cuja obtusidade não aproveita nem à direita), para atribuição à esquerda?


Evidentemente não sou cego aos fatos políticos da eleição em curso, acompanhados e analisados na página de um jornal do Partido da Imprensa Golpista, nas quais faz tanta diferença Maria Cristina Fernandes, que me parece ter ido muito bem – assim como Daniela Lima e outros jornalistas – no criticado Roda Viva que entrevistou Bolsonaro.


Por ela (M.C.F.), por ele (B.), pela pergunta que ela lhe fez, pela resposta que ele lhe deu, por quem se irritou com a pergunta e por quem (não) se irritou com a resposta, transcrevo civicamente uma parte da legislação brasileira do início da República, fruto de trabalho conjunto com a jornalista negra Ramíla Moura para a exposição “Vozes Libertárias”, realizada entre 5 de junho e 6 de agosto na Biblioteca do Senado. Dirigida com entusiasmo por Mônica Rizzo, a biblioteca leva o nome de um cronista do governo “golpisto” de Castello Branco, Luís Viana Filho, também ex-presidente do Senado no primeiro ano do governo Figueiredo.


Deixo de lado o Código Penal da República (Decreto nº 847, de 11/10/1890) decretado pelo presidente Deodoro da Fonseca antes mesmo da primeira Constituição Brasileira, que teve grande papel para coibir a circulação dos cidadãos negros brasileiros após a abolição, ao estipular que “não são menores” as crianças de 9 anos (art.27) – o que valerá até 1927, quando sobe para 14 anos –, punindo “mendigos” e “ébrios” (Arts.391 a 398) “vadios” e “capoeiras” (339 a 404) e abrindo brechas para o enquadramento criminal de manifestações religiosas de origem africana (Arts.156 a 158).


Deixo de lado porque seria até covardia argumentativa evocar o peso que teve na configuração do olhar da segurança pública – e do genocídio da juventude negra – uma criança de 9 anos ser passível de ser apreendida ou uma pessoa negra a caminhar poder ser “abordada” (versão-polícia do “trombadinha”) para dizer quem é e como e adonde, que diga seu nome de nascida e do que tem vivido.


Codificada também no segundo Código Penal da República, de 1940, a punição da mendicância foi revogada em 2009. Objeto de um projeto de lei de 2004, do então deputado José Eduardo Cardozo – o defensor de Dilma no impeachment –, a extinção da punição da vadiagem foi aprovada na Câmara, em 2012, e ainda tramita na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania, sob relatoria do senador Antônio Anastasia.


Elejo frisar, portanto, outro decreto pré-constitucional da alvorada republicana: o Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, que “Regulariza o serviço de introdução de imigrantes na República dos Estados Unidos do Brasil”. Os grifos são meus, nos três artigos iniciais:

  • Art.1º É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal de seu país, excetuados os indígenas da Ásia, ou da África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas.

  • Art.2º Os agentes diplomáticos e consulares dos Estados Unidos do Brasil obstarão pelos meios a seu alcance a vinda dos imigrantes daqueles continentes, comunicando imediatamente ao governo Federal pelo telégrafo quando não o puderem evitar.

  • Art. 3º A polícia dos portos da República impedirá o desembarque de tais indivíduos, bem como dos mendigos e indigentes.

Sendo sobre os “de fora”, a lei me parece ter bem a ver com a hierarquia racial que se estabelecia para os negros “de dentro”; e sendo do passado, tem grandes implicações na contabilização das dívidas da escravidão, pós e pré-Abolição, que se deve resgatar no presente. Talvez com Comissões das Verdade das implicações institucionais da escravidão, aptas a subsidiar a justiça para os escravizados e seus sucessores em instituições quase bicentenárias, como o Ministério de Relações Exteriores, o Senado, etc.


Como uma ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia, Manuela Carneiro da Cunha, tem um livro clássico sobre os negros brasileiros que retornaram à África – “Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África” (1985) –, fico a imaginar um argumento para filme com a história de um africano/a, premido/a por vontade ou necessidade de fazer a América, que se desembaraçasse da malha branca dos agentes consulares e diplomáticos do Brasil e de suas autoridades policiais.


A legislação é fonte de muitos exemplos da ação do Estado Republicano contra a população negra e em prol de projetos de branqueamento que trouxeram para o Brasil gente cuja presença inicial o “Dicionário das Famílias Brasileiras”, de Antônio Henrique da Cunha Bueno e Carlos Eduardo de Almeida Barata, ajuda a situar. Mesmo a parte dessas pessoas que confrontou/rompeu/corroeu em parte a ordem estabelecida – por anarquismo, comunismo, humanismo ou dignidade só –, fruiu do mundo que o racismo criou para a instalação de brancos.


Restrita a dez, a coleção de leis coligida por mim e Ramíla compreendia a Lei 9.459, de 13 de maio de 1997, que modificou o Código Penal de 1940 para criar a figura da injúria racial. O argumento era que a ofensa racial continuava a ser enquadrada como crime contra a honra, não como racismo, definido como crime inafiançável desde a CF 88, aspecto ratificado pela Lei 7.716/89 (Lei Caó).


Com efeito, após nove anos de tramitação, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou sobre o julgamento do caso Heraldo Pereira x Paulo Henrique Amorim (o criador da expressão PIG, até onde sei, e que agredira Heraldo racialmente, em 2009), no dia 13 de junho. Venceu a militância da advogada de Heraldo Pereira, Drª Vera Lúcia Santana de Araújo, que conseguiu que a injúria racial fosse qualificada como racismo com todas as letras, de modo que o constitucionalizado se sobrepusesse ao codificado (um pouco como lutam as mulheres na ADPF 442, para descriminalizar o aborto).


Complementamos nossa contribuição à exposição Vozes Libertárias nos socorrendo de uma obra de referência – o “Dicionário Mulheres do Brasil: de 1.500 até a atualidade. Biográfico e ilustrado”, organizado por Schuma Schumaher e Érico Vital Brasil –, para destacar a participação das mulheres na Abolição. Para se ter ideia da importância deste levantamento, a Wikipedia lista quatro mulheres em uma Lista de Abolicionistas Brasileiros que contém mais de cem nomes.


Em nosso levantamento, elaboramos uma lista com 13 abolicionistas brancas e 13 abolicionistas negras. Apenas uma mulher mencionada na Wikipedia não está incluída no referido Dicionário Mulheres do Brasil: Etelvina Amália de Siqueira; outra consta com nome diferente, Olegária da Costa Gama, não Olegarinha da Gama Carneiro da Cunha (a ver com os genealogistas se antepassada da antropóloga).


Tema que frequentemente atina só a homens, o “engajamento” político das mulheres brancas na luta pela Abolição é um capítulo a destacar na trajetória das lutas sociais. Tanto mais quanto o comparamos às formas de inserção das mulheres negras na vida pública, desde muito cedo como trabalhadoras no espaço urbano da rua e não apenas nas tarefas domésticas.


Digo mais, os dados da exposição são congruentes com uma hipótese levantada durante audiência pública sobre por que as mulheres negras morrem mais que as brancas, realizada na programação conjunta da Secretaria da Mulher da Câmara e da Procuradoria da Mulher do Senado para comemorar o aniversário de 12 anos da Lei Maria da Penha.


Na ocasião, o pesquisador do Ipea Antonio Teixeira Lima Junior sugeriu que o racismo negligenciou a rua como espaço em que a violência contra a mulher também se exerce. No mesmo sentido, a coordenadora nacional do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, Soraia da Rosa Mendes, falou em “feminicídio de Estado” e disse que “a Lei Maria da Penha [concentrada na violência doméstica] representa uma grande conquista, mas não é suficiente para as mulheres negras”.


Tenho para mim que as falas de ambos são tributárias do ativismo de Edson Lopes Cardoso. Ausente só de um dos textos escritos por mim na Casa da Mão – mas pressuposto –, Edson Cardoso foi homenageado no dia 26 de junho de 2018 de modo tocante num texto da jornalista negra Waleska Barbosa, intitulado “O Professor”, publicado no blog “Um por Dia”.


Pois, sim, de Edson é um texto definitivo sobre Bolsonaro, uma pá-de-cal escrita por ocasião do sucesso/vexame no Clube Hebraica, zona sul do Rio de Janeiro, que lhe – a B. só; ao clube, infelizmente, não – valeu uma condenação em 1ª instância, no Rio de Janeiro, e uma denúncia por racismo ao Supremo Tribunal Federal.

“Os Palhaços e a Lição dos Negros de Jaú” foi publicado naquele abril de 2017 no site da Brado Negro, de Ana Flauzina, e também na página do Geledés, de Sueli Carneiro e Cia.

Referências melhores não há.


 

1 “O desvio da injúria racial como suporte à intolerância no Brasil”, de vera lúcia santana araújo. disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-jun-19/vera-araujo-desvio-injuria-racial-suporte-intolerancia>. Acesso em 14/08/2018.

2 “Mulheres negras acusam Estado de feminicídio”. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/comum/mulheres-negras-acusam-feminicidio-de-estado-em-audiencia>

3 “O Professor”. Disponível em: < https://www.umpordiawb.com.br/single-post/2018/06/26/O-PROFESSOR>. Acesso em 14/08/2018.

4 Este e outros artigos de Edson Lopes Cardoso estão na seção Reflexões, na página da Brado Negro. Disponível em: <http://bradonegro.com/produtos.asp?PagAtual=10&TipoID=4>. Acesso em 14/08/2018,

5 “Os Palhaços e a Lição dos Negros de Jaú”. Disponível em: < https://www.geledes.org.br/os-palhacos-e-licao-dos-negros-de-jau/>. Acesso em 14/08/2018


 

DOCUMENTOS EM PDF (apenas leitura):

Legislação pós-abolição

https://issuu.com/scheufler/docs/legisla__o_p_s-aboli__o

Mulheres Brancas Abolicionistas

https://issuu.com/scheufler/docs/mulheres_brancas_abolicionistas

Mulheres Negras Abolicionistas

https://issuu.com/scheufler/docs/mulheres_negras_abolicionistas

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