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Conselho de Voltaire para as universidades públicas



E o governo bolsonarista quer tirar a gestão das universidades públicas do MEC para o MCTI. Mas o MCTI trata da Ciência e da Tecnologia. Onde vão parar os outros dois pezinhos do tripé universitário, o ensino e a extensão, no pragmatismo de um governo neoliberal que defende escola sem partido e reforma do ensino médio?


Segue claro que a agenda do governo eleito por várias desonestidades – intelectuais, educacionais, cognitivas, morais, midiáticas, tecnológicas – se insere na agenda global de reestruturação da educação no modelo de organização dos mercados centrais. Essa agenda anda a passos largos desde a década de 1980, acelerou com o golpe de 2016 e se agudiza em outro governo neoliberal, que ainda nem tomou posse, mas já nos assombra. A pressa aponta para a gestão das universidades como negócios comuns, vendendo seus serviços aos consumidores, que possam pagar por eles, claro. A consequência pode ser o aumento do descaso pelas Ciências Humanas, voltadas ao que se chama perigoso pensamento crítico.


Com frases mal-elaboradas e destituídas de qualquer referência histórica, científica, ética, o presidente marionete do mercado nacional e internacional se limitou a dizer que a brilhante ideia é para “dar um gás” na área. Declarações como essa apontam para a assumida mercantilização do ensino superior público neste momento de falência moral pós-cultura de consumo. Pensando que o capitão foi eleito por mais de 55 milhões de equívocos, o que estará depois da curva desse outro ataque à educação?


É claro que governos investem grandes montantes no ensino superior visando à competitividade. É claro que eles demandam, das universidades, objetivos econômicos que lhes atendam, mas a missão de uma universidade não pode ser apenas mercantil. Daí o paradigma da universidade necessária, termo e utopia de Darcy Ribeiro, para pensar a América Latina como problema. A complexidade está em equilibrar os múltiplos propósitos da universidade em cenário global, desafiador no mercado, mas também nas políticas sociais.


A lacuna intelectual da frase não é, portanto, só um problema teórico, mas uma ameaça concreta que vem na esteira das contradições sociais brasileiras, cuja História não nos permite eliminar, de antemão, quaisquer possibilidades do admirável mundo novo huxleyiano, de pessoas pré-condicionadas a viverem em harmonia com as leis e com as regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas e afastada da crítica universitária. Sempre podemos considerar as possibilidades de um mundo oposto; sempre podemos evitar o determinismo econômico da racionalidade instrumental neoliberal opondo-se à razão crítica; sempre podemos discutir o maniqueísmo e a dicotomia da disputa entre projetos supostamente opostos: o de bem-estar social (Welfare State) e o de mal-estar neoliberal, pois países com grande liberdade de mercado mantiveram eficiente o papel do Estado na proteção dos direitos e das garantias dos cidadãos no mundo, que é capitalista.


Sempre podemos evitar também o relativismo absoluto, que considera qualquer rumo da História válido apenas porque traduz o próprio tempo, mas a discussão crítica sobre o discurso bolsonarista não pode abraçar qualquer relativismo geral que se recuse a tomar posição em questões de opressão humana e de injustiça social. Não se fica sobre o muro em relação ao fascismo. No momento da ascensão das forças opostas ao pensamento crítico, a resistência também mostrou a cara, como menos dentes, é verdade, mas o cenário não deixa espaço para o otimismo panglossiano de Voltaire. O que hoje propõem as forças antidemocráticas do mercado global põe a universidade necessária ao Brasil e à América Latina em perigo.


É preciso criticar a ideia de que é necessário adaptar a universidade a esse mundo global da concorrência internacional com as mesmas receitas empregadas na construção da globalização econômica neoliberal dos anos 1980. Repetida permanentemente em jornais, na televisão, em conferências internacionais, ela traz pressupostos de um único modelo universitário global, ao qual todos os países devem se alinhar.


É fundamental o papel da universidade pública na desalienação, no estranhamento, na humanização das relações sociais pelo conhecimento, para além da pesquisa. A colonização da universidade pública pelo espírito neoliberal alerta: é preciso substituir o mantra leibniziano “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis” pelo conselho de Voltaire: "devemos cultivar nosso jardim."

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